terça-feira, fevereiro 4, 2025
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    O adeus a Duckadam, estrela tão eterna quanto fugaz da Champions

    Noventa minutos são mais do que suficientes para consagrar uma lenda do futebol. Helmuth Duckadam, na verdade, precisou de bem menos do que isso. Os 120 minutos de bola rolando ofereceram poucas ameaças ao goleiro do Steaua Bucareste durante a final da Copa dos Campeões de 1985/86. O que ele realizou depois disso em Sevilha, porém, é um dos maiores feitos individuais do futebol europeu: defendeu quatro pênaltis do Barcelona, tornou os romenos surpreendentes campeões em plena Espanha, levou a Orelhuda pela primeira vez para dentro da Cortina de Ferro. Seu nome é sinônimo de Champions.

    A carreira de Duckadam, no entanto, não se estendeu muito além daquele brilho tão intenso quanto fugaz. A despeito de seus 27 anos, o goleiro nunca mais entrou em campo pela Champions e encerrou sua carreira em alto nível num rompante. O mesmo braço direito que negou o inédito título continental ao Barça e o deu ao Steaua seria responsável por encurtar a trajetória de Duckadam quando mais se tinha expectativas sobre ele. Ainda assim, o camisa 1 imponente na marca da cal nunca deixou de ser herói. Os quatro pênaltis valeram a eternidade e a constante lembrança, inclusive diante de seu adeus nesta semana, falecido aos 65 anos.

    Helmuth Duckadam chamava atenção de diferentes maneiras. A começar por suas próprias origens, parte da minoria de alemães étnicos no oeste da Romênia. Com origens germânicas por parte de pai e de mãe, o garoto começou a sonhar em ser jogador de futebol desde cedo. Desejava ser goleiro. Ambicionava ser ídolo. “Quando era criança, sempre sonhei em disputar um grande jogo e ser o herói, levando meu time à glória. Mas, mesmo criança, não ousava imaginar que isso aconteceria numa final de Champions”, confessou em 2019, à revista FourFourTwo.

    Nascido e criado na cidade de Semlac, Duckadam iniciou a carreira em pequenas equipes locais. Já a partir de 1977, o jovem de 18 anos passou a defender o elenco principal do UTA Arad, força regional e seis vezes campeão nacional. Num clube habituado a disputar a primeira divisão do Campeonato Romeno, Duckadam contribuiu para o acesso em 1981. Depois de fazer sua estreia na elite durante a temporada seguinte, enfim mudaria sua história a partir de 1982: chegou à seleção e assinou com o Steaua Bucareste, potência local apoiada pelo exército.

    Ainda levou um tempo até que Duckadam se firmasse na meta do Steaua. Durante as duas primeiras temporadas, o novato oscilou entre reservas e titulares, com 17 partidas pelo Campeonato Romeno. A mudança de patamar aconteceu mesmo em 1984/85, quando o arqueiro tomou conta da posição. Não seria uma temporada qualquer: depois de sete anos em jejum, o Steaua reconquistou o título da liga nacional. Duckadam esteve entre os destaques de um time que sofreu apenas 24 gols em 34 partidas. Também garantiu a dobradinha na Copa da Romênia.

    A temporada 1984/85 ainda proporcionou a estreia de Duckadam nas competições continentais. O Steaua disputou a Recopa Europeia e não passou da primeira fase, eliminado por uma forte Roma treinada por Sven-Göran Eriksson. Antes da derrota por 1 a 0 no Estádio Olímpico, os romenos até seguraram o empate por 0 a 0 em Bucareste. Foi um resultado na conta de Duckadam, que defendeu um pênalti cobrado por Ubaldo Righetti aos 41 do segundo tempo. Um aperitivo ao que ocorreria na temporada seguinte.

    Os pênaltis, afinal, eram sabidamente a especialidade de Duckadam – muito antes de sua apoteose em Sevilha. O goleiro gostava de ficar além do horário nos treinamentos, apostando com os companheiros. Isso permitiu não apenas que barrasse alguns dos melhores jogadores do Campeonato Romeno nos 11 metros, mas que também marcasse um gol de penal, logo depois da mítica final da Champions. Gostava de se colocar no lugar do batedor e praticar as cobranças, para entrar na mente deles.

    “Um goleiro tem que se esquecer de tudo o que aconteceu e focar exclusivamente no momento. Ele precisa observar o batedor de perto e tentar ler sua mente, adivinhar suas intenções. Depois de cada treino, eu praticava pênaltis com meus companheiros, sempre tentando enganar ao me mover ligeiramente para uma direção. Ele então chutaria do lado oposto e, como eu sabia disso, pulava e defendia”, comentou, ao site da Uefa, em 2009.

    Ou como brincou Duckadam, em entrevista a Jonathan Wilson para o livro ‘The Outsider: A History of the Goalkeeper’: “Se eu não tivesse me tornado futebolista, eu definitivamente seria psiquiatra. Sempre gostei de andar na rua, olhar as pessoas e pensar: ‘O que se passa pela sua cabeça agora?’. Gosto de poker, sou bom nisso”.

    O Steaua Bucareste, embora tradicional na Romênia, nunca tinha ido além das quartas de final de qualquer competição europeia. O histórico recente, aliás, estava repleto de eliminações mais precoces do que isso. A temporada de 1985/86, de fato, marcou um antes e um depois ao clube. Até havia ligação com os Ceausescu, responsáveis pela repressiva ditadura do país desde 1965. Não são poucas as histórias de benesses ao time apadrinhado pelo regime. Mas não se nega que, às ordens do técnico Emerich Jenei, também havia talento em abundância.

    Jenei prezava por um futebol dominante, de toques curtos e qualidade ofensiva, mas sem renegar os cuidados ao preparo físico e à segurança atrás. Grandes nomes apareciam em todos os setores. O ataque era liderado por Marius Lacatus, figura notável da seleção romena, ao lado do artilheiro Victor Piturca. O meio-campo desfrutava da cátedra de Gavril Balint e da experiência de László Bölöni. Miodrag Belodedici despontava como um dos melhores defensores da Europa. Duckadam nem era visto como uma estrela, mas transmitia segurança e era regular, dono do gol.

    Ao longo da campanha, o Steaua Bucareste eliminou os dinamarqueses do Vejle, os húngaros do Honvéd e os finlandeses do Kuusysi. Embora tenha superado adversários relevantes em contextos nacionais, a primeira força realmente continental a aparecer no caminho foi o Anderlecht, nas semifinais. O favoritismo pendia aos violetas, donos da Copa da Uefa 1982/83 e liderados por talentos como Morten Olsen, Enzo Scifo e Frank Vercauteren. Avançaram os romenos, com vitória por 3 a 0 em Bucareste após a derrota por 1 a 0 em Bruxelas. Duckadam já foi essencial para evitar um placar pior na ida.

    A decisão em Sevilha consagraria um campeão inédito. Se de um lado o Steaua já experimentava o maior momento do futebol de clubes romeno, do outro o Barcelona tentava cumprir uma ambição que escapava há tempos. Não ter a Copa dos Campeões era uma lacuna ao clube duas vezes campeão da Recopa Europeia e três da Copa das Cidades com Feiras, precursora da atual Liga Europa. A final da Champions perdida para o Benfica em 1961 já era uma lembrança distante. E a decisão dentro da Espanha servia como motivo a mais de confiança para o time treinado por Terry Venables, liderado em campo por Bernd Schuster, Steve Archibald e Victor Múñoz.

    Antes da decisão, Duckadam pregava respeito. “A mentalidade ocidental tende a subvalorizar o futebol dos países do leste, talvez por falta de conhecimento. Nós podemos imitar o Dynamo Kiev e demonstrar que podemos estar entre os melhores da Europa”, declarou, ao Mundo Deportivo, na época. “Nossa defesa é muito segura e é por esta razão que vou estar muito bem protegido. Você viu o Belodedici contra o Sportul? Não te pareceu um defensor extraordinário?”

    A decisão em Sevilha não ofereceu o melhor futebol a quem assistiu aos 120 minutos de bola rolando. O Steaua Bucareste adotou uma postura mais cautelosa e preferiu se centrar no trabalho defensivo. Não deu muitos espaços ao Barcelona, que também não estava com a pontaria em dia. Duckadam trabalhou pouquíssimo, mais exigido em bolas alçadas na área. Quando suas redes balançaram, já no segundo tempo da prorrogação, o gol foi anulado por impedimento. Diante do empate por 0 a 0, os pênaltis seriam cabais à glória. Definiriam a história do camisa 1 imponente por sua altura e pelo volumoso bigode.

    O Barcelona vinha de uma classificação nos pênaltis já nas semifinais daquela Champions, diante do IFK Göteborg. E se hoje em dia seria obrigatório ao goleiro adversário ter estudado seus oponentes, Duckadam fez o oposto: não assistiu aos lances. O que, a seu ver, foi até favorável ao jogo psicológico estabelecido a partir de então. “Talvez isso tenha se tornado uma vantagem. Eles provavelmente pensaram que eu sabia como eles chutaram da última vez e isso os deixou mais inseguros”, analisou, à FourFourTwo.

    Duckadam começou os trabalhos sob pressão. Mihail Majearu abriu a série para o Steaua e parou no goleiro Urruti, experiente titular do Barcelona, que logo depois foi reserva da Espanha na Copa de 1986. O arqueiro romeno precisaria compensar contra Alexanko, capitão do Barça. Conseguiu, ao voar no canto direito para espalmar. Aquele foi um dos penais mais difíceis de se prever, pois qualquer possibilidade estava aberta. “Observei-o atentamente e, a julgar pelo posicionamento de seu corpo, senti que ele chutaria do meu lado direito. Esperei ele bater e defendi”, disse Duckadam, ao site da Uefa, em 2009.

    Urruti defendeu mais um pênalti logo depois, de Boloni. A partir de então, Duckadam tomou conta da situação e estabeleceu sua guerra de nervos contra os barcelonistas. “Os outros pênaltis eram uma questão de psicologia – ao me colocar no lugar do batedor. O segundo foi Pedraza, que talvez tenha pensado que, como eu já tinha defendido um à minha direita, eu poderia saltar para a esquerda. Sabia o que ele estava pensando porque Urruti tinha mudado de lado e defendido dois. Então o que eu fiz? Pulei para a direita de novo, sabendo que ele chutaria ali, e defendi, mesmo sendo o pênalti mais bem batido deles”, salientou. De fato, Pedraza chutou rente à grama e acertaria a bochecha da rede, não fosse o salto explosivo de Duckadam e a mão salvadora que quase chega a tocar a trave.

    O zero saiu do placar quando Lacatus soltou um míssil no centro do gol, que tocou o travessão antes de quicar ferozmente dentro da meta do vencido Urruti. Quem viria agora era Pichi Alonso, pai de Xabi Alonso, outro bastante experiente. Duckadam repetiu a estratégia e sequer deu rebote. “O terceiro foi o mais fácil. Era lógico que o jogador pensaria que um goleiro, já tendo defendido dois à sua direita, agora saltaria para a esquerda. Então Alonso bateu na minha direita e eu defendi”, rememorou.

    Quando Balint deslocou Urruti e fez o segundo gol do Steaua, a taça da Champions ficou ao alcance das mãos de Duckadam. O goleiro sequer perdeu os 100% de aproveitamento. Barrou Marcos, pai de Marcos Alonso e filho de Marquitos, pentacampeão europeu com o Real Madrid nos anos 1950. A esta altura, Duckadam já não sabia muito o que fazer. Mas deduziu que, depois de saltar três vezes para a direita, Marcos imaginaria que o padrão não se alteraria. O arqueiro ludibriou o oponente e mudou o lado: “Para mim, foi uma questão de inspiração. Se você ver o replay com cuidado, verá o jogo mental que fiz. Primeiro, deixei pensar que eu iria para a esquerda. Conforme ele se aproximava, eu me movi ligeiramente para a direita, então de repente saltei para a esquerda. Ele me viu mudar de direção, pensou que eu pularia de novo para a direita e chutou fraco na esquerda”.

    Ao fazer a defesa derradeira, Duckadam correu com a bola nas mãos, como se ela fosse sua por direito. A história se tornava sua. A imagem eterna do herói, logo depois abraçado efusivamente por companheiros e comissão técnica. Diante de um estádio repleto de barcelonistas, o troféu da Champions terminava em suas luvas. Segundo suas palavras, do outro lado, Urruti, o goleiro vencido mesmo defendendo dois penais, foi o único a cumprimentá-lo.

    “Sim, sou o herói da noite. Todos me dizem isso e, portanto, tenho que acreditar”, comentou Duckadam, ao Mundo Deportivo, logo na saída de campo. “Eu me sinto atordoado, muito atordoado. Não creio no que aconteceu. Antes desta noite, defendi cinco pênaltis durante a temporada. Passo muitas horas treinando especialmente para isso. Esta foi a noite mais inesquecível da minha vida”.

    A comemoração restrita ao estádio e ao hotel na primeira noite teve mais pompa no dia seguinte, quando os jogadores do Steaua saíram por Sevilha. Duckadam viu torcedores de Sevilla e Betis pagarem cervejas e pedirem autógrafos em guardanapos. Já na volta para casa, o governo romeno presenteou todos os jogadores com jipes ARO 4×4, de produção nacional, mas de segunda mão. Duckadam vendeu o seu e garantiu um dinheiro extra. Também se consagrou bicampeão romeno ao final da temporada, embora tenha se recusado a entrar em campo num dos últimos compromissos. O Steaua armou o resultado com a defesa adversária para tornar Piturca o artilheiro do campeonato, o que fez Duckadam se recusar a jogar. Foi suspenso pelo clube por duas semanas e multado em dois meses de salário. No fim das contas, o artilheiro da liga nem foi do Steaua: o prêmio ficou para um prodígio do Sportul chamado Gheorghe Hagi.

    Mal sabia Duckadam que aquela seria uma das últimas oportunidades de atuar pelo Steaua. Já antes da final da Champions, o arqueiro vinha sentindo formigamentos no braço direito. Durante as férias, o problema se agravou, diagnosticado como um aneurisma próximo à clavícula. “Eu tinha dores no meu braço direito por seis meses antes da final. Tomei remédios para controlar, mas não eram suficientes. Um dia naquele verão eu estava com meus amigos na minha cidade natal e caí. Coloquei a mão para me proteger e o aneurisma bloqueou a circulação de todo o braço”, contou, ao livro ‘The Outsider’.

    Duckadam repentinamente ficou afastado das atividades profissionais. Surgiram até mesmo rumores absurdos sobre seu sumiço, dizendo que o problema no braço era decorrente de uma tortura realizada pela ditadura. Conforme o boato, Duckadam teria recebido uma Mercedes do presidente do Real Madrid e Valentin Ceausescu, filho do presidente romeno Nicolae e com grande influência no Steaua, se sentiu no direito de possuir o carro. O goleiro então teria recusado a exigência e, em represália, foi atacado – em versões que especulam desde tiros no braço direito a dedos da mão quebrados com martelo. O goleiro, contudo, sempre desmentiu as histórias.

    Ao final de 1986, Duckadam foi eleito o melhor jogador do futebol romeno. Também foi o oitavo na Bola de Ouro, empatado com Marco van Basten. Mas não entrou mais em campo. Durante a Copa Intercontinental contra o River Plate, o goleiro até saltou diante das câmeras em Tóquio, mas não pôde atuar por causa de uma cirurgia recente relativa ao aneurisma. Também viu de fora a conquista da Supercopa Europeia diante do Dynamo Kiev, liderada pelo recém-trazido Gheorghe Hagi. A decisão médica, por fim, seria devastadora a Duckadam: o braço direito não mais permitia ao goleiro atuar em alto nível. Sua carreira na elite europeia chegara ao fim.

    O Steaua seguiu em frente, ao contratar Silviu Lung, referência da seleção, e até voltou à final da Champions em 1989, derrotado pelo Milan. Já Duckadam não se afastou totalmente do futebol. Também em 1989, de volta a Arad, ele teve uma nova chance. Após outra cirurgia, passou a defender o modesto Vagonul, que subiu da segunda para a terceira divisão na época. Contudo, foi uma estadia curta. Era pouco a quem tinha idade e estrela para compor a geração de ouro da Romênia, a partir da Copa de 1990. Cogitar Duckadam no Mundial de 1994 seria até possível, considerando que teria 35 anos. Ficou o exercício de imaginação para quem se fez gigante na Champions League. A passagem pela seleção se resumiu a apenas dois amistosos, ambos em 1982.

    Após pendurar as luvas, Duckadam trabalhou como guarda na fronteira entre Romênia e Hungria. Já na última década, voltou ao Steaua Bucareste para atuar como embaixador. Nenhum outro ex-jogador carregava consigo a aura vitoriosa do clube, afinal. O veterano solícito a dar entrevistas e a recontar minuciosamente sua façanha seguiu presente na mídia até seus últimos meses de vida. “Talvez eu seja azarado. Mas talvez eu seja sortudo também. Se minha lesão tivesse acontecido antes da final, ninguém iria querer me entrevistar agora”, afirmou, ao livro ‘The Outsider’. Sua adoração perdurará enquanto existirem torcedores do Steaua. Sua fama continuará reafirmada enquanto a taça da Champions seguir celebrada pela Europa.

    Leandro Stein
    Leandro Stein
    É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Foi redator, editor e sócio da Trivela de 2010 a 2023.

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