Uma das primeiras reações oficiais ao fim da ditadura de Bashar al-Assad na Síria veio do futebol. No domingo, 8 de dezembro, o ditador fugiu para a Rússia diante da tomada de Damasco pelas forças rebeldes. Horas depois, a Associação de Futebol da Síria mudou seu escudo: o vermelho da antiga bandeira foi sucedido pelo verde do novo pavilhão, assim como as duas estrelas se tornaram três. Um ato simbólico da representatividade do futebol diante da política. E também da mudança dos tempos, após Bashar al-Assad se apropriar do esporte e usar a própria federação como ferramenta em seu regime repressivo.
Bashar al-Assad chegou ao poder em 2000, como sucessor de seu pai, que ocupara a cadeira presidencial de 1971 até sua morte. Hafez al-Assad fez uso dos esportes para limpar a imagem de sua ditadura diante da comunidade internacional, a exemplo da organização dos Jogos do Mediterrâneo na cidade de Latakia em 1987 – quando Bassel al-Assad, seu primogênito, ganhou um ouro no hipismo. Entretanto, a exploração do futebol de maneira mais sistemática foi realizada por Bashar, que passou a investir nos clubes sírios e auxiliou a profissionalização da liga local. Assim, transmitia uma imagem mais modernizadora de seu regime opressor.
A década de 2000 já foi marcante para o futebol sírio nas competições continentais. A Síria teve seu grande momento na Champions Asiática em 2006, quando o Al-Karamah se tornou o primeiro representante do país em uma final. Os sírios sucumbiram diante dos sul-coreanos do Jeonbuk Hyundai Motors, com a vitória por 2 a 1 em Homs sendo insuficiente após a derrota por 2 a 0 na ida em Jeonju. Enquanto isso, na Copa AFC (a Copa Sul-Americana do continente asiático), Al-Jaish e Al-Wahda fizeram uma final entre clubes de Damasco em 2004, com o troféu para o primeiro. O Al-Karamah foi vice do mesmo torneio em 2009. Já o Al-Ittihad levou o troféu para Aleppo em 2010.
Apesar do bem-vindo desenvolvimento de clubes em diferentes cidades da Síria e das melhores condições aos futebolistas, nem tudo corria bem no futebol do país. O clientelismo já tomava conta das estruturas da federação, enquanto a repressão se notava quando conveniente à ditadura. Em março de 2004, uma briga entre os torcedores do curdo Al-Jihad e do árabe Al-Fotuwa desencadeou uma reação das forças de segurança. Seis curdos morreram. A partir de então, as tensões escalaram. A população curda, historicamente suprimida também na Síria, tomou as ruas da cidade de Qamishli em protestos por direitos básicos. Uma estátua do ex-presidente Hafez al-Assad foi queimada. O regime apelou à violência: foram pelo menos 30 mortos e 100 feridos, além de milhares de refugiados rumo ao Iraque. Aqueles embates ganharam simbolismo à luta pela soberania curda.
Se por um lado a ascensão do futebol na Síria gerava esperanças de uma seleção mais relevante, com um foco nas categorias de base, do outro estava claro como a mão de ferro da ditadura já pairava sobre a modalidade. Foi o que se notou de maneira mais clara a partir de 2011, quando os reflexos da Primavera Árabe tomaram o país e as manifestações contra o governo iniciaram a sucessão de fatos que levou à guerra civil. O regime interrompeu o Campeonato Sírio 2010/11 sem permitir sequer seu término, sob o temor que as multidões nas arquibancadas se tornassem uma voz mais forte contra o poder – tal qual ocorreu em outros vizinhos árabes.
Nos cinco anos seguintes, o Campeonato Sírio foi realizado de maneira limitada, sob as rédeas da ditadura. Os times se dividiram em dois grupos e as partidas se concentraram em duas cidades ainda sob o poder do governo central: Damasco e Latakia. Principais forças locais na virada da década de 2000, Al-Karamah e Al-Ittihad viram suas bonanças bastante comprometidas ao se afastarem de suas bases. Ainda assim, o futebol não era a principal preocupação diante do muito que acontecia, com Homs e Aleppo, respectivamente, lidando com a barbárie da guerra.
A ação repressiva da ditadura também se voltou contra os futebolistas sírios. O posicionamento político de ídolos locais passou a ser visto como perigo para o regime. Há dezenas de casos de jogadores que foram presos. Segundo dados de 2017 do jornalista Anas Ammo, pelo menos 38 futebolistas das duas principais divisões do Campeonato Sírio foram assassinados – por tiros, bombas ou métodos de tortura. Pelo menos 13 seguiam desaparecidos à época. Existem ainda dados de pelo menos 30 jogadores das seleções de base mortos. A juventude síria, afinal, estava na linha de frente de alguns movimentos rebeldes.
Além do mais, a ditadura se dispunha dos jogadores de futebol como marionetes. Eles eram ameaçados se não demonstrassem apoio público ao governo. “Assad estava ansioso para mostrar à população que atletas e artistas o apoiavam fortemente, porque essas são as pessoas com mais influência nas ruas. As marchas eram obrigatórias”, explicou Ammo, à ESPN Magazine, em 2017. No início da guerra, times inteiros eram forçados a sair em passeata pelo regime, por vezes carregando bandeiras e vestindo até camisetas com o rosto de Assad.
Já os estádios de futebol foram usados como bases militares e centros de detenção, mesmo enquanto as partidas aconteciam. O Estádio Abbasiyyin, em Damasco, é um exemplo. O local abrigava artilharia para suprimir os protestos. Até por isso, os estádios também se tornaram alvo de ataques, o que colocava a vida dos jogadores em risco. Youssef Suleiman, do Al-Wathbah, morreu ao ser atingido por um morteiro enquanto estava no hotel de um complexo esportivo em Damasco.
Nem todos os jogadores se sujeitaram à realidade de medo. Entre os milhões de refugiados da guerra da Síria, centenas de futebolistas deixaram o país. Houve uma debandada maciça de atletas a outras ligas, sobretudo ao Iraque. Também há casos de atletas que sequer continuaram suas trajetórias profissionais. Firas al-Ali, ex-zagueiro da seleção, fugiu do país após o assassinato de seu primo de 13 anos e passou a viver com sua família num campo de refugiados na Turquia. Seus bens e seu dinheiro foram tomados pelo regime.
Abdul Baset al-Sarout igualmente pendurou as chuteiras, mas optou por um caminho bastante diferente. O jovem goleiro do Al-Karamah era visto como uma das grandes promessas da seleção sub-20. Tinha 19 anos quando se iniciou a Primavera Árabe e virou uma das lideranças da resistência em Homs, cidade central aos rebeldes. Sarout foi morto numa ofensiva do exército sírio em junho de 2019. O ex-goleiro é tratado como um mártir, embora também contestado por declarações extremistas, depois refutadas por ele.
Ainda há aqueles que responderam à ditadura com a mesma moeda e decidiram agir politicamente através do futebol. Maior artilheiro da história da seleção, Firas al-Khatib é o maior símbolo. Em 2012, o atacante nascido em Homs renunciou às convocações. Com a bandeira da revolução sobre os ombros, o goleador declarou: “Aqui, diante da imprensa, quero dizer que nunca mais jogarei pela seleção enquanto bombas continuarem caindo sobre a Síria”. Outro a tomar atitude parecida foi o centroavante Omar al-Somah, então considerado uma das maiores promessas do país.
Nem todos tiveram essa coragem ou mesmo essa opção, o que era compreensível. Existem relatos de jogadores que viram familiares ameaçados se não atuassem pela seleção. A ditadura de Assad também impediu alguns destaques da liga local de atuarem fora do país, através da retenção de passaportes ou do serviço militar obrigatório. A seleção da Síria, naturalmente, servia de recurso precioso de propaganda ao regime. Não à toa, o título inédito do Campeonato da Federação de Futebol da Ásia Ocidental em 2012 rendeu uma pomposa recepção aos jogadores na sede do governo. Entre os vencedores estava o goleiro Mosab Balhous, preso em 2011 sob a acusação de abrigar rebeldes em sua casa, mas depois inocentado.
O momento mais significativo do futebol na Síria durante o regime de Bashar al-Assad, de qualquer forma, aconteceu durante as Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018. Os sírios ficaram mais próximos do que nunca da classificação ao Mundial. Terminaram na terceira colocação de sua chave, a dois pontos da vaga direta, e fizeram jogos duríssimos contra a Austrália na repescagem. A classificação australiana em Sydney veio somente com uma virada concretizada na prorrogação. Apesar do amargor derradeiro, a campanha não deixava de ser um orgulho aos sírios, que seguem sem disputar um jogo oficial em seu território desde 2010.
O desterro era um obstáculo, assim como as limitações para reunir os jogadores do elenco nos treinamentos em meio à guerra. Mas a reta final da campanha contou inclusive com reforços para a seleção da Síria. Artilheiro do Campeonato Saudita, Omar al-Somah retornou às convocações após cinco anos e garantiu gols decisivos, incluindo os dois contra a Austrália. Também aconteceu o retorno de Firas al-Khatib, mesmo dizendo que nunca mais vestiria a camisa síria enquanto as bombas caíssem no país. O veterano usou até a braçadeira de capitão nos jogos em que foi titular.
Khatib nunca falou claramente sobre os motivos que o fizeram mudar de ideia. Porém, as entrelinhas permitem imaginar muita coisa. “O que aconteceu é muito complicado. Não posso falar mais sobre essas coisas. Desculpa, sinto muito. É melhor para mim, para meu país, para minha família, para todo mundo se eu não falar”, comentou em 2017, à ESPN. Contou que ficou seis anos longe do pai, que não podia deixar Homs por questões de saúde: “É o momento mais duro da minha vida. Não quero voltar porque jogo pela seleção, ou porque apoio ou não apoio o governo. Quero voltar para a Síria como um sírio. Quero finalmente ver meus pais, meus irmãos”.
Quando Khatib renunciou à seleção, o regime de Assad parecia realmente ameaçado. Cinco anos depois, a guerra se arrastava e as dúvidas sobre uma mudança política pairavam sobre o país, com diferentes peças no tabuleiro do xadrez geopolítico. Neste sentido, a seleção da Síria era usada como um meio para a ditadura tentar transmitir normalidade. Ajudava também a complacência da Fifa, cujas ações contra uma federação tomada pelos partidários do regime se limitaram a bloqueios de bens, mas nada tão contundente. Como de costume, a entidade internacional lavou as mãos.
O Campeonato Sírio seguiu em frente apesar da guerra civil, inclusive com o retorno de partidas a cidades como Aleppo e Homs, à medida que o governo retomava o controle. Muitos estádios eram adornados por grandes imagens de Bashar al-Assad, isso quando não levavam o próprio nome da família. Emblemático que, de 2013 a 2019, seis dos sete títulos foram conquistados pelo Al-Jaish, clube de Damasco pertencente ao exército e beneficiado pelo regime. Também não surpreende que depois tenha ocorrido um tri do Tishreen, de Latakia, cidade que serviu de base política aos Assad e com forte presença dos alauitas, grupo étnico-religioso ao qual a família pertence. Já o atual bicampeão, Al-Fotuwa, foi recebido no salão presidencial sob a intenção de reforçar os laços políticos com a cidade de Deir ez-Zor – bastião no leste do território e dominada pelo Daesh (o autointitulado Estado Islâmico) até 2017.
A intenção de usar o futebol para passar um senso de normalidade não funcionou totalmente. A própria seleção da Síria não engrenou após as Eliminatórias para a Copa de 2018, ao contrário do que se imaginava – e refletindo rachaduras internas. Alguns jogadores do país se destacavam em ligas vizinhas do Oriente Médio, a ponto de Omar Khribin ser eleito o melhor futebolista em atividade na Ásia em 2017. Contudo, a equipe nacional nunca repetiu a sintonia. Sequer chegou à fase decisiva do qualificatório para o Mundial de 2026 e também não empolgou muito nas últimas edições da Copa da Ásia.
Um caminho adotado pela seleção da Síria nos últimos anos foi o recrutamento de descendentes da diáspora. De forma cada vez mais recorrente, são convocados filhos e netos de sírios estabelecidos em outros países – sobretudo na Argentina e na Suécia. Há movimentos migratórios ocorridos ainda na primeira metade do século passado, mas também aqueles decorridos da perseguição da ditadura dos Assad a minorias étnicas. Já o fim do regime tende a abrir portas àqueles que se mantinham firmes contra o chamado da seleção. Ainda assim, há uma geração de talentos que acabou dizimada pela guerra.
A queda de Bashar al-Assad encerra um período sombrio da Síria, embora não ofereça garantias totais ao futuro. Persistem dúvidas sobre como será a transição do país e alguns dos grupos extremistas envolvidos na longa guerra civil dos últimos anos podem provocar novas ondas de violência. Até o futebol pode continuar na mira, considerando episódios de ataques de fundamentalistas islâmicos contra alvos do esporte.
De qualquer maneira, os tempos de mudança permitem aos sírios criarem esperanças de dias melhores, inclusive no próprio futebol. Já existem esboços de um uniforme todo verde para a seleção, em conformidade com a nova bandeira, restaurada dos movimentos de independência nos anos 1930. A cor, simbólica também aos islâmicos, já era usada por um time dissidente estabelecido no Líbano anos antes. E ela igualmente está presente nas redes sociais de Firas al-Khatib, que permanece como maior artilheiro da seleção, mesmo tendo se despedido dos gramados em 2019. Depois do obrigatório silêncio, o agora técnico expressa a liberdade de enfim se manifestar. De poder traçar um futuro à sua cidade de Homs, onde, mesmo durante a guerra, ele já oferecia um caminho para crianças graças a uma escolinha de futebol.