A famosa ironia britânica esteve em exibição para uma plateia de milhões de pessoas ao redor do mundo no último domingo. Porque quando Anfield foi preenchido com insinuações de que Pep Guardiola não chegaria ao próximo almoço com emprego, não havia ninguém que realmente acreditava que ele seria demitido.
Foi uma zombaria inofensiva, compreensível, dada a quantidade de decepções e frustrações que o Manchester City impôs àquela torcida – tenta fazer 97 pontos sem ganhar o título um dia e vê se é legal -, e oportunista porque não são apenas raros os momentos em que o desempenho de um time de Guardiola concede a premissa, mesmo que irrealista, de que ele talvez possa ser demitido.
Este provavelmente é o único.
Não é difícil encontrar simbolismo em um confronto entre os dois clubes que moldaram a última década da Premier League, mas o mais importante talvez não seja tão claro: o contraste entre uma organização que foi obrigada a mudar e outra que decidiu continuar como estava.
Antes de progredir, precisamos frisar que, se o Liverpool (aqui entendido como seu dono, presidente, todos os diretores, membros da comissão técnica, jogadores e torcedores, até as paredes do centro de treinamento e as minhocas do gramado de Anfield) pudesse ter escolhido, Jürgen Klopp ainda estaria lá. Estaria lá mesmo se todos soubessem que, com um novo técnico, a campanha seguinte começaria com 18 vitórias em 21 jogos.
Mas Jürgen Klopp não está mais lá porque não queria estar mais lá e não adianta debater a sabedoria da decisão. Se Klopp estava sem energia para continuar e precisava descansar, então tomou a decisão correta para ele. E para o Liverpool, tanto faz, porque não havia opção. Se ainda é cedo para cravar que Arne Slot é o homem certo para a próxima era – por mais que pareça no momento -, não é para perceber que há um cheirinho de carro novo em Anfield.
Klopp é muito comparado com Bill Shankly, e eu juro que a gente parará de fazer isso quando as histórias pararem de ser parecidas. Shankly era o cara de personalidade expansiva que quebrou o ciclo de fracassos do Liverpool e decidiu sair por conta própria depois de um processo de renovação do elenco – viu como é difícil evitar? Houve consternação, claro, e ninguém sabia exatamente o que esperar do seu sucessor, o ex-auxiliar Bob Paisley.
Aqui as histórias divergem um pouco porque Arne Slot não era tanto uma incógnita, não estava já dentro do clube e havia feito um trabalho excepcional à frente do Feyenoord. Ainda assim, o salto que deu sempre gera incertezas (alô, Ten Hag!) e dá para traçar paralelos entre os perfis de ambos, corrigindo a moeda para as eras midiáticas que ocupam: são mais sóbrios que seus antecessores, sem socos no ar, atentos aos detalhes, rigorosos na disciplina.
Uma liderança mais silenciosa – o título da biografia de Bob Paisley é “O Gênio Silencioso”.
Não são fenômenos sobrenaturais. Um olhar novo e competente em cima de uma fundação muito sólida pode gerar bons resultados em qualquer lugar, e os dois pegaram times montados em diferentes graus de renovação. Slot tem sido perfeito, até agora, em misturar a continuidade com suas próprias ideias.
O Liverpool virou um time tão letal, entre outros motivos, porque melhorou a parte defensiva. Os rivais apontaram, com certa razão, a tabela mais fácil para justificar as vitórias no começo da temporada, mas, desde então, Manchester United, Milan, Real Madrid, Chelsea, RB Leipzig, Bayer Leverkusen e Manchester City foram batidos pela Slot Machine. O Liverpool sofreu dois gols nesses jogos.
Porque está sendo um time mais paciente na posse de bola, cedendo menos oportunidades de contra-ataque – o contraponto do estilo da administração anterior que frequentemente transformava as partidas em uma grande caça-níquel. Seguro atrás, com Ryan Gravenberch ancorando o meio-campo (um desses detalhes observados por Slot) e um ataque que castiga de maneiras diferentes, o Liverpool consegue abrir o placar e depois entra em campo a memória muscular de uma das melhores transições ofensivas da história.
Curiosamente, Pep Guardiola costuma fazer essas coisas sozinho: de repente Messi é falso 9, e Philipp Lahm é volante, e Mascherano é zagueiro, e Eric Abidal é zagueiro e David Alaba é zagueiro, e qualquer um que não é zagueiro agora é zagueiro, e John Stones é volante, e Bernardo Silva é ala direito, e agora não é mais 4-3-3, é 3-4-3 ou 4-2-4 ou a gente voltou para 1950 e é um WM.
Não acho que ele de repente não tem mais ideias, mas talvez não haja mais ideias para se ter com o elenco atual do Manchester City.
Há duas opções para estender ciclos longos e/ou vitoriosos: renovar o elenco ou trocar o técnico. Alex Ferguson passou quase 27 anos à frente do Manchester United porque não tinha muitos sentimentos. Quando achava que alguém precisava ir embora, tchau – Paisley, aliás, era igual. Zidane adotou uma abordagem diferente depois de ser tricampeão europeu. Decidiu que quem precisava sair era ele. Estava (parcialmente) errado. Voltou e teve relativo sucesso.
Guardiola começou a temporada no último ano do seu contrato. E várias coisas pairavam sobre a renovação: as possíveis punições ao Manchester City por 115 acusações de violações financeiras, o sentimento de dever cumprido depois de uma Tríplice Coroa e do tetracampeonato inglês, um elenco que precisa de ar fresco, o cansaço depois de oito anos em ritmo acelerado, o desgaste depois de oito anos de um estilo exigente e o interesse de seleções nacionais. Ele decidiu ficar, e uma das análises mais populares é que ficou motivado pelo desafio de renovar o elenco e montar um novo time vencedor.
Bom, quando Deus quer te punir, ele atende suas preces. Parece que esse realmente será um desafio.
O que mais chama a atenção no calvário do Manchester City é o quanto ele parece um time velho. E nem é tanto assim. De Bruyne, Walker e Gündogan estão entre os 33 e 34 anos. O resto deveria estar no auge físico e técnico. Mas joga como um time velho. Foi gritante a disparidade de intensidade em Anfield. Há lentidão na frente e atrás. A quantidade de erros defensivos ficou insustentável para uma proposta que sempre andou no fio da navalha quando o adversário recuperava a bola ou quando a levava ao ataque com passes curtos e arriscados.
A lesão de Rodri obviamente prejudicou, assim como a clara decadência de Walker e a transformação de Kevin de Bruyne em Morgan Freeman: parou de fazer papéis principais, de vez em quando topa uma aparição especial e você diz “nossa, é mesmo, o Morgan Freeman”. Ou talvez as circunstâncias tenham apenas exposto um problema mais estrutural.
Apenas cinco jogadores com 26 anos ou menos fizeram 1.000 minutos pelo Manchester City nesta temporada e apenas três podem ser considerados pilares de um time altamente competitivo – Haaland, Foden e Gvardiol.
Esse número é sete no Liverpool, com mais dois (Núñez e Jones) quase lá. Sete no Arsenal, sete no Real Madrid, sete no Barcelona, sete no PSG, sete na Atalanta (quando eu comecei a estrutura deste parágrafo não imaginava que todo mundo seria sete), e oito (finalmente) no Chelsea.
Não conta a história inteira porque não estaria tudo bem com o Manchester City se Rúben Dias tivesse um ano a menos e Matheus Nunes tivesse jogado 84 minutos a mais. E a Internazionale, por exemplo, tem apenas Alessandro Bastoni entre seus principais jogadores com 26 anos ou menos. Mas ilustra como ainda são os mesmos caras de sempre e que as operações de renovação até agora – um Savinho aqui, um Doku ali, um Rico Lewis surgindo – foram limitadas.
E de certa forma é como perguntar ao Paul McCartney, assim que ele compôs Let It Be, quando vai sair a próxima que definirá uma era da música: o Manchester City acabou de ser o primeiro tetracampeão inglês da história e acabou de conquistar uma Tríplice Coroa. Mas o futebol avança rápido.
Talvez, se Guardiola não apenas tivesse se recusado a renovar contrato como acompanhado Klopp na administração de um quiosque de praia em Ibiza, a situação do Manchester City fosse pior. Talvez um novo treinador, como Arne Slot, conseguisse inserir um impulso renovado neste mesmo elenco. Ou talvez tomasse a decisão de começar uma profunda renovação antes da temporada, e a situação seria pior, mas com o entendimento de começo algo novo.
Embora seja importante não subestimar a capacidade de Guardiola de encontrar soluções e emendar 30 vitórias seguidas sem você nem perceber, a situação atual parece o fim de algo velho.
E dizer isso, ou que o elenco do Manchester City precisa de renovação, ou que talvez a passagem de Guardiola por lá tenha se esgotado, não é tanto uma crítica quanto um reconhecimento de que a água molha, o pássaro voa e o tempo passa.