quarta-feira, março 12, 2025

Guangzhou, símbolo das ruínas do El Dorado Chinês

O futebol teve diferentes “el dorados” em sua história. O El Dorado Colombiano inaugurou uma série de episódios em que centros menos expressivos da modalidade foram capazes de atrair uma quantidade respeitável de jogadores de primeira linha, sobretudo medalhões, pagando salários suntuosos. A Arábia Saudita é o fenômeno mais recente, enquanto Japão e Estados Unidos tiveram seus auges. Na China, o oásis que se abriu há mais de uma década, contudo, agora se mostra apenas uma miragem.

Uma característica marcante do ocaso dos anos de ouro do futebol chinês é justamente o desaparecimento de times que um dia protagonizaram as glórias no país – algo mais próximo do que aconteceu nos Estados Unidos, com a extinta NASL nos anos 1980. Nesta semana, pintou nas manchetes a prova cabal de que a história recente do futebol na China se esfumaça: o Guangzhou FC, antigo Guangzhou Evergrande, não recebeu permissão para disputar a segunda divisão nacional por conta de suas dívidas. Vai no mínimo interromper suas atividades profissionais, sem data para retorno.

O Guangzhou simboliza muito bem o processo de ascensão e queda do futebol chinês nos últimos anos. Alguns dos clubes que surfaram no El Dorado sequer eram tradicionais, se aproveitando da onda de investimentos de grandes empresas locais para decolar. O Guangzhou foi abraçado pela Evergrande, companhia que representava o momento pulsante na construção civil do país. A partir de 2010, o salto sem precedentes aconteceu para a agremiação de uma cidade importante da China, mas sem ter exatamente grande lista de glórias dentro de campo.

Fundado em 1954, o Guangzhou era um clube de aparições intermitentes na primeira divisão do Campeonato Chinês e sem conquistas tão relevantes. Pelo contrário, representava algumas dificuldades típicas das décadas anteriores à expansão do Campeonato Chinês: a luta por profissionalizar o futebol nos anos 1990, em meio à abertura maior do mercado nacional, e os recorrentes episódios de manipulação de resultados que contaminavam a lisura dos torneios. Sob apoio de diferentes patrocinadores, o Guangzhou viveu na gangorra entre a primeira e a segunda divisão na virada do século. A queda em 2009 foi seguida pelo acesso em 2010. Então, a história se transformou num estalar de dedos.

A Evergrande chegou ao Guangzhou exatamente neste momento de retorno à primeira divisão. Com respaldo do poder público, o futebol chinês recebeu massivos aportes financeiros das grandes companhias locais e desfrutou de benefícios que permitiram grandes contratações – num processo com similaridades ao que já ocorrera no vizinho Japão durante os primórdios da J-League, por exemplo. A China se firmou como um destino cobiçado, especialmente pelos altos salários que pagava. Existia um projeto de longo prazo, para aprimorar os talentos locais e levar as maiores competições do mundo ao país.

Obviamente, o El Dorado Chinês se inseria num contexto específico se comparado aos demais episódios do tipo. Após 15 anos de fronteiras ampliadas com a Lei Bosman e de um futebol europeu dominante sobretudo por suas cotas de TV, não chegou um Alfredo Di Stéfano, um Pelé ou um Zico aos times chineses. Mesmo assim, eles foram capazes de garimpar talentos inegáveis em mercados secundários, como Brasil e Rússia, assim como tiraram coadjuvantes de clubes de primeira prateleira da Europa. Além do mais, tinham técnicos renomados para oferecer um tempero a mais.

O Guangzhou Evergrande aproveitou tantos desses nomes. Na lista de destaques que saíram de clubes brasileiros, Darío Conca foi contratado como protagonista do Fluminense recém campeão da Série A. Até então, os Tigres do Sul da China pinçavam talentos brasileiros espalhados por times menos competitivos financeiramente, como Muriqui e Cléo. O argentino foi um dos primeiros a desbravar o El Dorado, com a benesse de receber o terceiro maior salário do futebol mundial na época, atrás apenas de Cristiano Ronaldo e Lionel Messi. Fincou bandeira para fazer um time multicampeão e abriu portas a muitos outros na sua esteira.

Do Brasil ainda chegaram ao Guangzhou alguns futuros ídolos, como Elkeson e Ricardo Goulart. A grande jogada da Evergrande, de qualquer maneira, era atrair outros que já estavam na Europa. Paulinho, Talisca, Robinho e Alan desembarcaram com renome, sobretudo o primeiro. Paulinho foi capaz de sair duas vezes de clubes das grandes ligas, Tottenham e Barcelona, para se aventurar na China. E atletas de outros países também abraçaram a ideia, alguns ainda com boa lenha para queimar – Lucas Barrios, Alessandro Diamanti, Alberto Gilardino e Jackson Martínez, todos vindos das cinco grandes ligas.

Como nenhum outro, o Guanghzou dominou a Super League Chinesa. O acesso de 2010 já se emendou com o título inédito na primeira divisão em 2011. O Evergrande acumulou um hepta consecutivo na elite até 2017, com ainda um troféu isolado em 2019 e dois vices até 2020. Os Tigres do Sul da China celebraram ainda dois títulos da Copa da China. Já o ápice ocorreu na Champions League Asiática, com as taças de 2013 e 2015. O Guangzhou pôs fim a um jejum de 23 anos dos clubes chineses na competição. Era o sinal mais claro de como o impacto da Super League extrapolava fronteiras, mesmo que a seleção patinasse.

O Guangzhou Evergrande não estava sozinho na força de mercado do Campeonato Chinês. Durante o auge do investimento, nomes até mais notáveis vestiram camisas de clubes como o Shanghai Shenhua, o Shanghai SIPG, o Beijing Guoan, o Shandong Luneng e o Jiangsu Suning. Didier Drogba foi o maior astro a jogar no país, logo após vencer a Champions com o Chelsea, mas durante um tempo se especulou até Gareth Bale. Como diferencial em relação à concorrência, o Guangzhou Evergrande soube construir times competitivos ao aliar estrelas estrangeiras em ótima forma e jogadores relevantes locais. As apostas em treinadores consagrados, sobretudo Marcello Lippi e Felipão, também deixou os Tigres num nível acima.

Os sinais de desgaste do modelo adotado pelo Campeonato Chinês foram gradativos, a começar pela “taxa de luxo” de 100% nas contratações de jogadores, imposta em 2018. Já era uma tentativa de fechar a torneira e redirecionar os investimentos a um modelo que promovesse mais o autodesenvolvimento. A pandemia e a crise imobiliária na China, por fim, impactaram inegavelmente no negócio. Os grandes nomes se tornaram cada vez mais raros. Um teto salarial também foi imposto. Os patrocinadores tiveram que tirar suas referências dos nomes das equipes. Sem a mesma prosperidade de outrora, alguns clubes importantes fecharam as portas.

Já tinha sido emblemático quando, em 2021, o Jiangsu Suning encerrou suas atividades. O clube acabara de conquistar a Super League em 2020, mas se extinguiu diante da crise na Suning, holding que também era proprietária da Internazionale. O eixo do futebol chinês mudava, embora antigas potências tenham se sustentado bem nessa metamorfose, sobretudo o agora dominante Shanghai Port – o antigo SIPG. Com o colapso e a seguida falência da Evergrande, o Guangzhou desabou junto. Foi rebaixado em 2022 e, desde então, vinha sendo um figurante na segunda divisão.

Agora, o Guanghzou FC sequer consegue viabilizar sua licença profissional no Campeonato Chinês, por conta de suas dívidas. Em sua nota oficial, a atual direção pediu desculpas e apontou que ainda buscará uma forma de apoiar o desenvolvimento do futebol local. Restam as raízes e a tentativa de preservar ao menos o espírito do velho Guangzhou, que possui uma expressiva base local. A média de público chegou a bater na casa dos 47 mil espectadores por jogo durante o auge do heptacampeonato.

O Campeonato Chinês atual é muito mais modesto em termos de referências. Ainda há uma legião importante de brasileiros, inclusive alguns naturalizados, como Elkeson, Alan e Fernandinho. Contudo, Oscar era o último grande elo com a bonança e se despediu recentemente após sete temporadas no Shanghai Port, herói em três conquistas da liga, inclusive em 2024. Sua saída soa como uma página virada em relação aos salários faraônicos e à capacidade de tirar figuras de relevo do futebol europeu.

Outro retrato de ruptura da Super League veio nos tribunais, em dezembro: Li Tie, astro da seleção que disputou a Copa do Mundo de 2002 e assistente do Guangzhou por quatro temporadas, foi condenado a 20 anos de prisão. Ele confessou ter participado de manipulação de resultados enquanto era treinador do Hebei China Fortune e do Wuhan Zall, além de aceitar e oferecer subornos nos dois anos em que treinou a seleção. O montante da corrupção chegava a US$ 16,5 milhões, segundo a justiça local. O caso mostra como o dinheiro corrente no futebol chinês nem sempre foi usado para o real benefício do esporte local.

A exclusão do Guangzhou FC, por fim, se torna o sinal mais expressivo do término de uma era. As taças empilhadas são apenas um souvenir na estante da instituição que precisa interromper sua história. O Campeonato Chinês ainda tem potencial para ser relevante na Ásia, dada a importância da economia local, assim como o investimento nos jogadores locais pode acertar a mão nos métodos de formação e aprimoramento. Contudo, daquele império sonhado, hoje restam ruínas do que foi um El Dorado. Sem Copa do Mundo no país, sem sequer Mundial de Clubes, com concorrência de outros emergentes, sem tantos figurões e sem sequer o clube que mais atraiu atenção do planeta.

Leandro Stein
Leandro Stein
É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Foi redator, editor e sócio da Trivela de 2010 a 2023.

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