Num período de peladas infestadas por subcelebridades e intermináveis especulações no famigerado “mercado da bola”, as festas de fim de ano são sinônimo de vazio existencial no futebol brasileiro. Nem sempre foi assim, porém. Décadas atrás, Natal e Ano Novo eram épocas sem descanso até para os maiores craques do Brasil. Não foram poucas as vezes em que a Seleção atravessou a virada em concentração para competições ou até mesmo disputando campeonatos.
Diferentes edições da Copa América, então chamada de Campeonato Sul-Americano, foram realizadas entre janeiro e dezembro. A escolha deste período era um tanto quanto compreensível, por causa do intervalo entre temporadas nos principais campeonatos ao redor do continente – ainda que muitos clubes sequer parassem totalmente e agendassem amistosos na virada do ano.
Em tempos nos quais o dinheiro da bilheteria era fundamental, o período de recesso se tornava ideal para fisgar bilheterias maiores, especialmente quando os jogos noturnos eram raridade. No fim das contas, os principais talentos sul-americanos é que pagavam o pato, atravessando as festividades fora de casa.
A primeira vez que tal situação aconteceu com a Seleção foi em 1925, ano em que o Campeonato Sul-Americano foi realizado no mês de dezembro, em Buenos Aires. Aquela edição contou com a participação apenas de Argentina, Brasil e Paraguai. A rodada final do triangular em dois turnos foi marcada exatamente para 25 de dezembro, com um clássico natalino entre argentinos e brasileiros. Mais de 30 mil pessoas encheram as arquibancadas do Estádio Sportivo Barracas. O empate daria o troféu aos albicelestes, e foi o que aconteceu, num 2 a 2 marcado pelo clima bélico em pleno Natal.
O Brasil chegou a flertar com a vitória, o que forçaria um jogo-extra. Dois de seus principais astros fizeram a diferença, com os gols de Arthur Friedenreich e Nilo logo na primeira meia hora de partida. Contudo, distante do espírito natalino, uma confusão ocorreu. O zagueiro Ramón Muttis deu uma entrada desleal em Friedenreich, que revidou a agressão. O embate descambou para uma briga generalizada entre os jogadores, com invasão de campo da torcida. Os brasileiros precisaram ser protegidos pela polícia local.
Apaziguados os ânimos, a final logo seria retomada. A Argentina aproveitou o clima intimidatório e reagiu. O primeiro gol, no fim do primeiro tempo, veio com Antonio Cerotti. Já na segunda etapa, o astro Manuel Seoane garantiu a igualdade em 2 a 2 e o título para a Albiceleste. Na saída de campo, os brasileiros ainda receberam de “presente do Papai Noel” pedras e sacos cheios de água atirados pela torcida. No Rio de Janeiro, posteriormente, torcedores brasileiros fizeram passeatas em protesto nas ruas. Aquele jogo ficou conhecido como ‘A Guerra de Barracas’ – uma guerra ironicamente natalina.

O clássico contra a Argentina em 1925 foi a única partida na história da Seleção disputada no dia de Natal. Isso não quer dizer que os jogadores do Brasil tivessem sempre a data disponível para aproveitar com a família. A partir dos anos 1930, a realização do Campeonato Sul-Americano se deu diversas vezes na virada do ano. A começar por 1935, com a primeira rodada em 6 de janeiro. O Brasil se ausentou da edição realizada no Peru, mas os jogadores não tiveram escapatória rumo ao Sul-Americano de 1937.
A estreia do Brasil naquele Campeonato Sul-Americano aconteceu em 27 de dezembro de 1936. A delegação brasileira, assim, precisou partir do Rio de Janeiro rumo a Buenos Aires em 17 de dezembro. Numa época na qual as viagens de avião não eram opção, não houve solução para o Natal longe de casa.
O desembarque do navio Oceania na Argentina, ao menos, permitiu que os astros passassem a virada do dia 25 em terra firme – mas restritos ao hotel. O elenco incluía uma série de talentos da Seleção que logo faria história na Copa do Mundo de 1938. Para aquele Campeonato Sul-Americano, o técnico Adhemar Pimenta convocou figuras como Tim, Jaú, Jurandyr, Carvalho Leite, Patesko e Niginho.
O Brasil estreou com vitória diante do Peru, por 3 a 2, dentro do Viejo Gasómetro de Boedo. A primeira folga da Seleção veio só depois desse compromisso, mas ainda antes do Ano Novo, em 28 de dezembro. Os jogadores puderam sair à noite de Buenos Aires, mas “foi recomendado, com certa insistência, a absterem-se terminantemente de bebidas alcoólicas” – relatava o jornal A Noite, na época. Por outro lado, os boêmios ganharam permissão para ficar na rua até de madrugada.
Passado o Ano Novo, o Brasil voltou a campo em 3 de janeiro. Foi um movimentado triunfo por 6 a 4 sobre o Chile, na Bombonera. A boa campanha do Brasil no Sul-Americano de 1937 levou à realização de um jogo-extra ao final das cinco rodadas, diante da igualdade em pontos com a Argentina na tabela. Melhor para os anfitriões, que contaram com dois gols de Vicente de la Mata numa tumultuada partida para vencer por 2 a 0 na prorrogação e levar a taça.
O Brasil voltou a se ausentar do Campeonato Sul-Americano em 1939 e em 1941. Já na virada rumo a 1942, os brasileiros foram privados das festas de fim de ano em seu retorno ao torneio. A edição sediada em Montevidéu teve seu pontapé inicial em 10 de janeiro de 1942. Bem antes disso, a Seleção iniciou sua concentração na cidade mineira de Caxambu. A bagunça imperou por lá desde as vésperas do Natal. Minou as chances do forte elenco treinado por Adhemar Pimenta – que reunia figuras como Domingos da Guia, Zizinho, Sylvio Pirillo, Patesko, Tim, Servílio, Cláudio e Caju.
Em 24 de dezembro, parte do elenco convocado já estava concentrado. O Jornal dos Sports, no entanto, registrava ausências de atletas – inclusive algumas sem explicação. O próprio massagista Johnson ainda não estava presente, ao receber uma passagem errada da CBD para o Rio de Janeiro, e não para Caxambu. Pior, os primeiros treinos sequer tinham material esportivo, já que as chaves para abrir as malas onde estavam guardados os itens não haviam sido levadas à cidade mineira.
As condições melhoraram um pouco depois disso, permitindo os treinamentos, mas o clima instável se seguiu. O elenco ganhou folga em 31 de dezembro, mas estava em campo para atividades logo na manhã de 1° de janeiro. Os jornais relatavam insatisfações com o tratamento conferido pelo técnico Adhemar Pimenta e ainda havia incerteza sobre como a viagem ao Uruguai se daria, com a possibilidade de irem até de navio.
No fim, a delegação voou para Buenos Aires e só então seguiu a Montevidéu. Na estreia, a vitória por 6 a 1 sobre o Chile dentro do Centenario animou. Porém, as derrotas para Argentina e Uruguai custaram as chances de título, com a taça erguida pela Celeste.
Se não houve Campeonato Sul-Americano nos dois anos seguintes, as festas de fim de ano dos craques mesmo assim não foram tranquilas: o Campeonato Brasileiro de Seleções de 1943 teve suas finais em dezembro, com os dois últimos duelos entre Rio de Janeiro e São Paulo realizados nos dias 23 e 30.

Já na virada de 1944 para 1945, a rotina voltou a ser preenchida pela Seleção. O Sul-Americano de 1945, em Santiago, começou em 14 de janeiro. O Brasil estreou no dia 21 de janeiro, mas novamente a concentração se iniciou no mês anterior.
Outra vez não foi simples reunir os melhores jogadores do país em Caxambu, mesmo que o Natal tenha sido de folga, com a apresentação posterior. A chegada à cidade mineira foi gradual e provocou o descontentamento da comissão técnica – o jornal A Noite acusava o “pouco caso dos clubes e o relaxamento dos craques”.
Conhecido por sua severidade, o técnico Flávio Costa estabeleceu uma data limite em 30 de dezembro. O comandante ameaçou dispensa sumária e até mesmo penas mais duras, como multas e suspensão. Na véspera do dia 30, oito atletas não tinham chegado, entre aqueles que justificavam lesão e outros sem explicação. De Zizinho, por exemplo, ninguém sabia o paradeiro.
“O nosso trabalho está sendo inteiramente prejudicado, pois não sei com quem posso contar ao certo para formar os dois quadros que irão a Santiago. O tempo que nos resta é exíguo e por esse motivo serei obrigado a utilizar apenas os players que aqui estão”, afirmou o técnico Flávio Costa, ao Jornal dos Sports. Zizinho apareceu na concentração no dia 31 e ganhou o indulto.
Entretanto, a firmeza do treinador resultou em dispensas estelares. Leônidas da Silva desembarcou em Caxambu só em 2 de janeiro e não foi aceito no grupo por Flávio Costa. Recebeu uma suspensão, assim como outros três companheiros do São Paulo (Remo, Luizinho e Noronha) que não cumpriram os prazos. Até o final de dezembro, o Tricolor excursionava pelo Uruguai fazendo amistosos.
Nem todos os que estiveram em Caxambu durante as festas de fim de ano em 1944 foram ao Campeonato Sul-Americano de 1945. O técnico Flávio Costa ainda realizou alguns cortes, durante os últimos treinos no Rio de Janeiro, antes da viagem ao Chile. Era um grupo fortíssimo que reunia um quinteto ofensivo formado por Tesourinha, Zizinho, Heleno de Freitas, Jair Rosa Pinto e Ademir de Menezes, além de figuras em outros setores como Domingos da Guia, Danilo Alvim e Oberdan Catani. A derrota por 3 a 1 para uma potente Argentina, todavia, abriu caminho para a conquista dos rivais.
O desafio de Flávio Costa se repetiu na virada de 1945 para 1946. Novos compromissos da Seleção ocupavam as festas de fim de ano. E com um detalhe: o Brasil jogou a Copa Roca contra a Argentina até 23 de dezembro, enquanto em 5 de janeiro disputou a Copa Rio Branco contra o Uruguai. A estreia no Campeonato Sul-Americano de 1946, em Buenos Aires, ocorreu em 16 de janeiro.
Apesar do calendário apertado, os jogadores ainda puderam passar o Natal com suas famílias. A conquista da Copa Roca sobre a Argentina no dia 23 se consumou com a vitória por 3 a 1 em São Januário. Em uma convocação que concentrava atletas de Rio e São Paulo, os jogadores foram liberados para folgar nos dias seguintes. A reapresentação aconteceu em 27 de dezembro, com grupos divididos no Pacaembu e em São Januário, antes que todos se juntassem no Rio de Janeiro. Só não tiveram o Ano Novo livre, com a viagem para Montevidéu em 2 de janeiro.
O Uruguai conquistou a Copa Rio Branco, com vitória por 4 a 3, antes do empate por 1 a 1 – ambos os jogos foram realizados no Centenario. Por fim, a estreia do Brasil no Campeonato Sul-Americano rendeu a vitória por 3 a 0 sobre a Bolívia. A equipe de Flávio Costa tinha qualidade para mirar a taça. Nomes como Ademir, Domingos, Danilo, Heleno, Jair, Tesourinha e Zizinho seguiam no grupo, reforçados por Leônidas. Conseguiram a revanche por 4 a 3 sobre o Uruguai de Obdulio Varela, mas não superaram a Argentina de Adolfo Pedernera e Ángel Labruna. Em mais um clássico repleto de entreveros, a Albiceleste venceu por 2 a 0, dois gols de Norberto Méndez, e foi campeã.
O Natal de 1947 também poderia estar em risco para os jogadores da Seleção. Para alívio dos astros, a CBD abriu mão de disputar o Campeonato Sul-Americano realizado no Equador. Aquela edição, inclusive, teve dois jogos em 25 de dezembro: Argentina 2×0 Equador e Uruguai 1×0 Peru. Lendas como Alfredo Di Stéfano, José Manuel Moreno e Schubert Gambetta passaram as festas bem longe de casa.
Em 1949, o Campeonato Sul-Americano aconteceu no Brasil. As datas mudaram, com a competição organizada entre abril e maio. Foi o momento em que o calendário do torneio deixou de emendar com a virada do ano. Em 1956, apesar do início do Sul-Americano no fim de janeiro, o técnico Oswaldo Brandão só convocou o time após o Ano Novo.

Já uma exceção natalina ocorreu em 1959, na edição extra realizada em dezembro, no Equador. O Brasil encerrou sua participação no dia 22, contra a Argentina, e terminou em terceiro. O time dirigido por Gentil Cardoso reunia apenas jogadores do futebol de Pernambuco. Alguns atletas retornaram a tempo do Natal em Recife, mas parte do grupo ampliou a turnê, em preparação da equipe pernambucana para o Campeonato Brasileiro de Seleções.
O último jogo daquele Sul-Americano Extra de 1959 inclusive foi marcado para 25 de dezembro. Num duelo entre os dois últimos colocados, o Equador de Alberto Spencer venceu o Paraguai por 3 a 1. O artilheiro equatoriano foi o presente de Papai Noel para o Peñarol, logo se consagrando na conquista da primeira edição da Copa Libertadores em 1960 – da qual também foi o artilheiro inaugural.
O Campeonato Sul-Americano de 1967, outra vez sem o Brasil, teve uma fase preliminar realizada no fim de dezembro. Depois disso, o torneio não mais atrapalhou as festas. O modelo atual da Copa América, concentrada em sede única entre junho e julho, passou a vigorar a partir de 1987.
Já em 2025, os mais ávidos por futebol voltarão a contar com uma competição continental no período da virada: a Copa Africana de Nações começará em 21 de dezembro, no Marrocos, com jogos da fase de grupos na época do Natal e do Ano Novo. Ter partidas nestes dias em países muçulmanos, como no próprio Campeonato Marroquino, é bastante comum. Num torneio internacional de tanto peso, porém, não se vê há décadas.