Um drible, um lançamento ou um golaço podem ser indicativos de como um jogador é acima da média. Porém, talvez o sinal mais claro seja uma mudança tática que não o faça perder a excelência. A adaptabilidade que não impacta a qualidade indica como o talento está presente. E o que dizer, então, quando a transformação ajuda o atleta a ir além? Raphinha vive esse processo no Barcelona, demonstrando partida após partida que é um extraclasse. Está evidentemente entre os melhores da atual temporada e, aos 28 anos, no pico de uma carreira repleta de bons momentos, embora nem sempre tão reconhecida.
Desde que trocou o Avaí pela Europa, Raphinha conseguiu render bem em todos os clubes que defendeu. Deslanchou no Vitória de Guimarães e se valorizou no Sporting, mesmo com menos tempo no Estádio José Alvalade. Teve bons momentos na Ligue 1 com o Rennes e virou herói do Leeds após a volta à Premier League, essencial para a boa campanha de reestreia e depois para livrar os Whites do rebaixamento. O momento mais incerto em sua carreira profissional aconteceu já no Barcelona, em suas duas primeiras temporadas. Por isso a revolução atual de Raphinha salta tanto aos olhos.
Atribuir a ascensão do camisa 11 apenas à mudança no comando técnico, porém, é perder de vista o tamanho da contribuição de Raphinha nesta temporada. É certo que Hansi Flick ofereceu um novo encaixe ao brasileiro e deu confiança, algo que não se notava nos tempos de Xavi. O trabalho do atacante, de qualquer maneira, transborda a todos os aspectos do jogo. É tático e mental, mas também técnico e físico, com boas doses ainda de liderança do capitão.
A primeira revolução de Raphinha veio na mentalidade. E os seus dois primeiros anos no Barcelona foram muito duros nesse sentido. O brasileiro não entendia a falta de minutos em campo. Independentemente do que fizesse, não jogava tanto como titular e, quando isso acontecia, os 15 minutos do segundo tempo eram sempre o fim da linha. “Não é nenhuma crítica a Xavi. Inconscientemente, eu sabia que ia sair. Tentava fazer tudo em 60 minutos e não saía nada. E, outras vezes, quando fazia as coisas, me tirava do mesmo jeito”, contou o jogador, ao jornal El País, em novembro.
A chegada de Hansi Flick ofereceu uma virada de página a Raphinha e o treinador reconheceu seu talento, algo essencial para que o camisa 11 ganhasse confiança. De certa maneira, o alemão viu que tinha uma pérola, reforçando um laço visto antes entre o gaúcho e Marcelo Bielsa no Leeds. Flick parecia disposto a transformar o brasileiro numa nova versão de Serge Gnabry, brilhante na última tríplice coroa do Bayern de Munique e principal sócio de Robert Lewandowski. Raphinha consegue ir muito além. Aproveita esse novo respaldo para ganhar impulso, utilizando ainda outros elementos em seu entorno.
Se a relação que possui com Deco desde muito antes já soou como entrave, como se não tivesse respaldo tão direto da comissão técnica de Xavi por ter o português como seu antigo agente, neste momento a ligação com o diretor esportivo até ajuda no trânsito interno de Raphinha. E aquilo que não dava certo, o brasileiro passou a usar de motivação – vide a reação diante dos pedidos para que Nico Williams fosse contratado e usasse a sua camisa 11. Posicionou-se publicamente, tratando também de dar a sua resposta dentro de campo.
“Dou o melhor: se antes trabalhava 100%, agora ofereço 200%”, apontou Raphinha, também ao jornal El País. Há uma preparação muito bem feita ao redor do atacante, tanto no trabalho físico quanto na análise tática. O camisa 11 entrega bastante ao estilo de jogo mais direto e voraz do Barça de Hansi Flick, a ponto de ser um dos mais intensos em campo e aparecer como terceiro com mais minutos nessa temporada. Já a leitura de jogo e a forma como se encaixa em diferentes partidas se dá também por um foco individual no seu papel tático, algo aprimorado no cotidiano em conjunto com a comissão técnica.
Hansi Flick explora muito bem o jogo de Raphinha porque uma das principais virtudes do brasileiro é um dos princípios do estilo do alemão: a forma de atacar os espaços. Méritos do técnico ao perceber também que o brasileiro poderia entregar ainda mais quando saísse de sua zona de conforto. Em vez de readaptar um talento puro como Lamine Yamal, Flick optou por explorar a maturidade e a inteligência de jogo de Raphinha. De início, o camisa 11 se indagou sobre o rendimento que teria em outras faixas do campo. Hoje, está mais do que evidente como ele é capaz de entregar sem ficar restrito.
Raphinha não é mais “apenas” o ponta canhoto que infernizava invertido pela direita. Ele é um armador cerebral e um ponta esquerda que não perde a característica de flutuar. O funcionamento do Barcelona depende demais dessa adaptabilidade do gaúcho. Ajuda muito, além da consciência tática, também a capacidade técnica. O repertório de Raphinha em 2024/25 é talvez o mais completo da Europa: as arrancadas fulminantes, as finalizações geladas, os dribles desconcertantes, os lançamentos precisos, os passes açucarados, as infiltrações rompedoras. Os 20 gols e 11 assistências materializam o que se nota a olhos vistos além dos lances decisivos, que são tantos.
O primor técnico de Raphinha vem com a consciência de seu trabalho como atleta. “Se você não é consciente de que precisa estar longe da noite, longe da festa… Se não você não pensa que precisa deixar isso de lado, a técnica não serve de nada. A técnica é importante, mas precisa ir de mãos dadas com o trabalho”, pontuou ao El País. Um exemplo que se nota nos treinos, diante do elogio de treinadores e companheiros sobre seu empenho máximo a cada atividade. Algo que abriu mais as portas como capitão.
A braçadeira é a cereja do bolo no impacto de Raphinha sobre o atual Barcelona. Mesmo com seus altos e baixos nas duas temporadas anteriores, o brasileiro foi apontado pelos próprios companheiros como quarto na hierarquia dos capitães. Seu posto se elevou diante das lesões e das ausências dos três à frente. A postura do camisa 11 também o catapultou neste sentido. Raphinha é elogiado pela forma como escuta os colegas, sobretudo os mais jovens. Também os defende acima da própria instituição, como foi no recente imbróglio envolvendo Dani Olmo. Joan Laporta pode ter desaprovado, mas o capitão expôs um sentimento que prevalece nos vestiários e também precisa ser considerado.
O resultado de tantas virtudes de Raphinha? Uma coleção de atuações magistrais. A vitória sobre o Real Madrid na Supercopa é mais uma na lista que já incluía a destruição do Bayern de Munique na Champions League, o Clássico do primeiro turno de La Liga e outras mais. Além do coletivo fortalecido, o Barcelona conta com vários jogadores fazendo uma temporada individualmente brilhante, em especial Lamine Yamal e Pedri. Raphinha consegue se colocar acima de todos e, na Europa, há poucos para se equiparar ao brasileiro. Títulos são importantes para sacramentar esse momento, mas a impressão é de que esta revolução de Raphinha não se limitará a apenas uma temporada.