Há bons anos que a Bola de Ouro se tornou um prêmio para celebrar narrativas, não necessariamente a grandeza do futebol praticado. Independentemente da justiça ao redor dos vencedores, parece compulsório ter algum troféu por clube ou seleção que justifique a escolha final. Nem sempre foi assim. A qualidade da bola, veja só, já bastou para garantir uma merecida condecoração. Foi este caminho “simples” que consagrou Denis Law como ganhador da honraria em 1964. A coroação de quem recebeu o apelido de “The King” e permanecerá exaltado como um nobre do futebol, após falecer no último dia 17, aos 84 anos. Aquele que, segundo Sir Alex Ferguson, foi o maior jogador escocês de todos os tempos.
A Bola de Ouro de Denis Law foi conquistada diante de forte concorrência. O segundo colocado da premiação foi Luis Suárez Miramontes, craque da Internazionale campeã europeia e ganhador do troféu individual quatro anos antes. Já o terceiro, Amancio Amaro, ascendia como estrela do Real Madrid então tetracampeão nacional. Juntos, os espanhóis levaram a Eurocopa e mesmo assim ficaram abaixo de Law, que não comemorou um título sequer com o Manchester United naquele ano de 1964. Preponderava sua excelência, que não deu chances aos ibéricos e a outros tantos gigantes – tais quais Eusébio, Paul van Himst, Jimmy Greaves, Mario Corso, Lev Yashin, Gianni Rivera e outros mencionados naquela votação da France Football.
O talento de Law era celebrado mundialmente desde antes. A ponto de, em 1963, o atacante integrar a “Seleção do Mundo” que enfrentou a Inglaterra no amistoso em Wembley que comemorou os 100 anos da fundação da Football Association e da criação das regras do futebol. O escocês dividiu o ataque com seu ídolo, Alfredo Di Stéfano, tendo ainda ao lado na linha de frente os célebres Raymond Kopa, Eusébio e Francisco Gento. Ferenc Puskás e Uwe Seeler tiveram que começar no banco.
A realeza de Denis Law, inclusive, não passava despercebida diante dos olhos do verdadeiro Rei do Futebol. Pelé chegou a declarar que o escocês era o único jogador britânico talentoso o suficiente para integrar a seleção brasileira. Não falava da boca para fora. Bastava ver a maneira como Law tratava a bola para saber como ali estava um talento genuíno, que honrava a própria história da Escócia como os primeiros “professores” do resto do planeta quanto ao futebol bem jogado.
A técnica de Denis Law era impressionante. O atacante tinha um infindável arsenal de recursos: dribles curtos, domínios fantásticos, posicionamento preciso, finalização fatal com apenas um toque, frieza para tomar decisões, plasticidade para uma coleção de bicicletas e outras artes mais. Que os gols fossem constantes, sua qualidade o levava muito além da grande área. Era um elegante bailarino, e que nem por isso renegava seu espírito guerreiro a cada lance. Também sabia ser um atacante impetuoso e brigador. Em tempos nos quais muitos gramados britânicos se assemelhavam a pastos enlameados, Rei Denis não se furtava a se jogar no barro para buscar o gol.
O espírito competitivo de Law tantas vezes falava mais alto. A determinação e a vontade de vencer o faziam ser ainda mais querido por quem o assistia. Tornava-se a encarnação do torcedor em campo. Ser refinado não o levava a tirar o pé da dividida, algo que fazia parte de seu caráter. Tinha a personalidade forte, mas também não perdia a humildade por isso e nem deixava de ser solidário dentro de campo. Entre suas contradições e a imagem de rebelde, se comunicava pela bola.
E se um dia Denis Law virou sinônimo de lindos gols na Grã-Bretanha, é curioso como muitos sequer o viam como futebolista até o meio da adolescência – nem ele mesmo. Caçula de sete irmãos, o escocês nasceu na cidade de Aberdeen, em fevereiro de 1940. A Segunda Guerra Mundial acabara de eclodir e sua família pobre lidava com muitas privações. O pai pescador, George, lutou nas duas Grandes Guerras. A mãe, Robina, trabalhava como faxineira em uma escola. Orgulhosa de seus filhos sempre bem aprumados, lutava para garantir a honradez, mesmo que as condições precárias fizessem da carne no prato um luxo esporádico e só garantissem água quente no chuveiro aos domingos.
Denis costumava dividir a cama com outros dois irmãos. Cresceu um menino mirrado, que ainda lidava com o estrabismo. Era ótimo aluno e sonhava em se tornar arquiteto. Contudo, o gosto pelo futebol acabou prevalecendo. Mesmo que fosse alvo de bullying, o “pequeno nerd” anotava seus gols enquanto batia sua bola usando os óculos corretivos por ser estrábico. Jogava na rua até anoitecer. A bola muitas vezes acabava improvisada com novelos de lã. A primeira chuteira, então, só ganhou na adolescência, e de segunda mão.
A escola auxiliou no contato de Denis Law com o futebol. Chegou até a recusar a vaga num colégio que tinha o rugby e o críquete como modalidades principais, para não se distanciar da verdadeira paixão. O menino fazia parte de equipes escolares, embora o estrabismo o obrigasse a atuar com um dos olhos fechados, diante do empecilho de usar seus óculos nestas partidas. Talvez por isso não tenha prosperado tão além na Escócia, por mais que demonstrasse talento. Não chamou atenção de qualquer clube escocês, sequer do seu amado Aberdeen. Vivia a cerca de três quilômetros do estádio e frequentava as arquibancadas de Pittodrie quando sobrava algum dinheiro aos pais.
O dom de Denis Law só foi realmente descoberto quando tinha 15 anos. Um vizinho, Archie Beattie, era olheiro do Huddersfield Town e o levou para um teste na Inglaterra. Seu irmão era Andy Beattie, técnico da equipe principal e que também havia dirigido a Escócia na Copa do Mundo de 1954. Quando viu o garoto franzino e estrábico, entretanto, Andy não botou fé: “Esse garoto é uma aberração. Nunca vi alguém que se pareça tão pouco com um prospecto do futebol”.
Bastou uma semana de testes para o treinador mudar de ideia. Andy pediu desculpas a Archie: “Achei que era uma pegadinha sua, mas, assim que o vi chutar uma bola, percebi que vai ser verdadeiramente grande”. Denis Law assinou seu primeiro contrato em abril de 1955, aos 15 anos. Mudava-se à Inglaterra para defender as equipes de base do Huddersfield, enquanto recebia um contrato de “aprendiz de jardineiro” para ter um salário que auxiliasse no sustento.
A ascensão de Denis Law seria rodeada pelos maiores técnicos escoceses da história. Se Alex Ferguson, também em eclosão como jogador, o admirava a ponto de classificá-lo como “meu herói” e Matt Busby se beneficiou de sua consagração no Manchester United, foi Bill Shankly quem o transformou em craque. A futura lenda do Liverpool assumiu o Huddersfield a partir de 1956, no lugar de Andy Beattie. Logo percebeu a pérola que tinha em mãos. Shankly dizia que Law possuía o raciocínio mais rápido que conheceu. O comandante colocou o adolescente sob suas asas e, além de transmitir seus ensinamentos, também permitiu que ele evoluísse fisicamente.
Law foi submetido a uma cirurgia para corrigir o estrabismo. Mais do que a melhora na visão, a operação mexeu com sua confiança: não tinha mais medo de olhar as pessoas nos olhos. “Essa cirurgia mudou minha vida”, avaliou tempos depois, em sua autobiografia. O regime de treinamentos proposto por Bill Shankly também permitiu que o atacante ganhasse força e aceleração, auxiliado ainda pelo reforço alimentar. Aos 16 anos, Denis Law fez sua estreia como profissional e assinou seu primeiro contrato como futebolista.
“Embora ele não parecesse o mais forte dos garotos, era obstinado e tinha uma grande força de caráter. Ele lutava com seu coração. E com a cabeça, é claro. Law era fácil de ensinar”, dizia Shankly. O Huddersfield conheceu rapidamente um fenômeno. A seleção da Escócia também, com a primeira convocação do atacante aos 18 anos. Law chegou a ser cotado para disputar a Copa do Mundo de 1958, mas só estreou meses depois, em outubro. Era o mais jovem a vestir a camisa da Tartan Army em 60 anos. Cravou logo um bonito gol na primeira partida, uma vitória por 3 a 0 sobre Gales. Já no segundo compromisso, o capitão norte-irlandês Danny Blanchflower vaticinou: “Se ele é assim aos 18, não gostaria de jogar contra ele quando tiver 24”.
Bill Shankly deixou o Huddersfield rumo ao Liverpool em 1959. Tentou levar Denis Law, mas os Reds não tinham dinheiro suficiente para bancar o negócio. A saída do atacante, em março de 1960, o transformou no jogador britânico mais caro da história até então. Desembarcou em Manchester, mas primeiro para vestir a camisa celeste do City. Em sua primeira temporada completa, anotou 23 gols em 43 aparições – e isso porque os seis contra o Luton Town pela Copa da Inglaterra não foram contabilizados, depois que o jogo precisou ser abandonado aos 70 minutos.
Pouco mais de um ano depois, o Manchester City teve 100% de lucro ao vender Denis Law. O Torino dobrou o recorde de transação britânica mais cara e levou o atacante para a Itália em 1961. Law chegou ao país que se tornava o epicentro do futebol europeu, inclusive em relação aos salários pagos. Seus números não foram ruins no Calcio, com dez gols pela Serie A, mas a marcação violenta dos zagueiros e a perseguição da imprensa fizeram o jovem forçar sua saída. Mesmo com uma oferta maior da Juventus, ele preferiu voltar à Inglaterra.
Melhor ao Manchester United. Matt Busby conhecia seu compatriota há tempos, desde que avistara sua classe nas categorias de base do Huddersfield. Tento levá-lo na época, mas os detentores do passe não quiseram fazer negócio. Para tirá-lo do Torino, quebrou mais uma vez o recorde de negócio mais caro do futebol britânico. Não se arrependeu, afinal. A chegada de Denis Law marca um ponto de virada ao clube, especialmente após o trauma causado pelo Desastre de Munique – e quem fazia essa avaliação era um sobrevivente do acidente aéreo, o craque Bobby Charlton.
A primeira temporada de Denis Law em Old Trafford garantiu o primeiro título desde a tragédia: os Red Devils celebraram a FA Cup 1962/63, com direito a gol do escocês na final. O atacante balançou as redes 29 vezes naquela temporada, apenas o início de seus números avassaladores. O United, 19° colocado no Campeonato Inglês em 1962/63, saltou para a segunda colocação em 1963/64. Imparável, Law terminou a temporada com fantásticos 46 gols em 42 jogos, o que pavimentou seu caminho à Bola de Ouro. Ninguém encantava mais no futebol europeu naquele momento.
A reconquista do Campeonato Inglês após oito anos aconteceu em 1964/65, outra vez com Law virando protagonista. O luto pelos Busby Babes dava lugar à veneração da Santíssima Trindade. Bobby Charlton representava a hierarquia e a maestria de quem tinha literalmente ressurgido das cinzas. George Best ascendia como o irresistível talento precoce de dribles desconcertantes e noitadas alucinantes. Denis Law podia não ter a liderança de um ou o frenesi do outro, mas também sabia como encantar por sua técnica e seu ímpeto. E era tão valorizado que, dentre os três, acabava recebendo o maior salário.
Denis Law era “O Rei”, uma referência também às suas raízes escocesas. Ou então o “Lawman”, o atacante que fazia a lei dos gols imperar em campo. Para os adversários, era “Denis, the Menace”, a Ameaça, um trocadilho com o nome original do desenho conhecido no Brasil como “Denis, o Pimentinha”. O craque continuou em alta para reconduzir o Manchester United ao título do Campeonato Inglês em 1966/67. Aquela conquista abriu as portas da Europa definitivamente aos Red Devils, que então faturaram a Copa dos Campeões em 1967/68. Law não disputou a final, atrapalhado pelas lesões, mas se gravava como um dos heróis da epopeia inédita de um clube inglês ao topo da competição.
O Manchester United ainda tentou o bicampeonato continental em 1968/69, quando parou nas semifinais diante do Milan. Denis Law foi artilheiro daquela Champions. A virada aos 30 anos, todavia, marcou um período atravancado pelos problemas físicos. Temporadas de ausência se alternavam com outras nas quais o craque recobrava os lampejos de outrora, mesmo sem ser tão efetivo quanto no auge. Ainda assim, teve fôlego para chegar aos 237 gols pelo clube e se eternizar como terceiro maior artilheiro do United.
A saída de Matt Busby do comando técnico apontou o começo do fim daqueles anos abastados em Old Trafford. Denis Law cogitava pendurar as chuteiras no clube, mas se sentiu traído quando o técnico Tommy Docherty, a quem tinha indicado para o cargo, o dispensou do elenco. O treinador não cumpriu uma promessa ao atacante, que sentiu aquilo como uma afronta à própria família. Assim, resolveu continuar em Manchester e defender outras cores, de volta ao City depois de 12 anos.
A temporada de 1973/74 foi a única de Denis Law nesta volta ao Manchester City e a última completa de sua carreira. Foi nela que aconteceu seu gol mais famoso, o lindo toque de calcanhar em pleno clássico, que marcou o rebaixamento do Manchester United para a segunda divisão inglesa. Um tento que simboliza tanto sobre o Rei. Acima de qualquer senso de vingança, ele preferiu não comemorar e parecia um tanto quanto atordoado pela pintura, imaginando que aquele ato poderia culminar no descenso. Mesmo assim, seria aplaudido e abraçado por torcedores dos Red Devils ao final daquele embate em Old Trafford, sinal maior de sua idolatria.
E, aos 34 anos, Denis Law teve tempo de cumprir um último sonho: disputar uma Copa do Mundo pela Escócia. Mesmo sem nunca ter atuado por um clube escocês, o atacante sempre foi apaixonado por sua seleção. Dizia que defender a Tartan Army era sua maior honra. Claro, também nutria um ódio natural pela seleção inglesa – a ponto de preferir jogar golfe enquanto se disputava a final da Copa do Mundo de 1966. Após o título dos rivais, Rei Denis rotulou aquele como o “pior dia de sua vida”.
Pela seleção, Law dividiu o campo com outros dos maiores jogadores escoceses da história. Jogou com Kenny Dalglish, talvez seu maior concorrente nas listas de maior craque nascido na nação. Também fez tabelas com Jimmy Johnstone e Jim Baxter, respectivamente lendas de Celtic e Rangers. Porém, a Tartan Army se ausentou das grandes competições ao longo dos anos 1960. As principais experiências para Law no período eram os clássicos contra a Inglaterra. Esteve presente nos infames 9 a 3 aplicados pelos Three Lions em 1961. Sua vingança particular veio em abril de 1967, quando abriu o placar nos 3 a 2 sobre os ingleses recém-campeões do mundo em Wembley, numa vitória que valeu o título do tradicional British Home Championship aos escoceses e um orgulho por toda a vida.
Depois de tanto esperar por seu momento, Law ao menos teve o gosto de disputar uma Copa do Mundo em 1974. Seu último jogo pela Escócia foi a vitória por 2 a 0 sobre o Zaire, na estreia da equipe na Alemanha Ocidental. O atacante viu do lado de fora ainda os empates contra Brasil e Iugoslávia, que abreviaram a passagem dos escoceses pelo torneio. Despediu-se como o maior artilheiro da história da equipe nacional, com 30 gols, marca depois igualada por Dalglish.
A influência de Denis Law permaneceu no imaginário de muita gente. O cabelo desgrenhado virou inspiração a um torcedor fanático da Tartan Army, e um de seus compatriotas mais famosos, Rod Stewart. Já o nome Dennis, com um N a mais, foi escolhido por Wim Bergkamp para batizar seu menino em homenagem ao craque que admirava – e quem diria que o filho do eletricista também encantaria no Campeonato Inglês. Desde a última semana, Rei Denis pode ser visto materialmente apenas em bronze, eternizado em forma de estátua diante de Old Trafford – o último da Santíssima Trindade a partir, após George Best e Bobby Charlton. A história que escreveu, contudo, está gravada em ouro e será recontada enquanto a memória dos súditos resistirem. Eles atravessam gerações.