“Alan, as pessoas estão morrendo.”
A semifinal da copa da Inglaterra de 1989 havia acabado de começar quando o zagueiro do Liverpool, Alan Hansen, ouviu essa frase de um dos primeiros torcedores que conseguiram escapar das jaulas do estádio de Hillsborough. O escocês não acreditou. Imaginou que fosse apenas mais um caso de hooliganismo. Foi preconceito, mas, dentro do contexto da época, Hansen tinha motivos para achar que se tratava de mais uma confusão de torcedores violentos. O defensor estava concentrado na partida contra o Nottingham Forest e, de longe, nada diferenciava aquela confusão das centenas que os estádios ingleses viram nas últimas duas décadas. Demorou para perceber que estava diante do maior desastre da história do futebol inglês e que 96 pessoas que gritaram tantas vezes o seu nome estavam prestes a morrer.
Há 20 anos, os estádios da Inglaterra eram palco de gangues brigando umas com as outras. Os casos recorrentes e a cultura do hooliganismo começaram nos anos 1960 e se intensificaram na década seguinte. A torcida do Liverpool, especialmente, estava com uma imagem muito atrelada à violência por ter sido a personagem principal de um desastre internacional, quatro anos antes, em Bruxelas. No que pode ser considerado o auge trágico desse movimento, 39 pessoas, a maioria fãs da Juventus, morreram na final da Copa dos Campeões por causa da inconsequência e da volúpia criminosa dos ingleses. O que aconteceu no estádio Heysel, na Bélgica, resultou em uma suspensão de cinco anos para todos os clubes da Inglaterra de competições europeias – seis no caso do time vermelho de Merseyside.
As brigas entre as gangues de hooligans eram muito territoriais. Expulsar o inimigo da sua própria casa. No país dele, então, deveria ter o gosto de um cheeseburguer com queijo extra para aquelas pessoas. O Manchester United fez isso na França contra o Saint-Étienne, em uma partida da Copa da Uefa, de 1977, e foi banido da Europa. A mesma punição foi aplicada ao Leeds United, dois anos antes, por ter feito a violência atravessar o Canal da Mancha e tomar conta das ruas de Paris, depois da derrota na decisão da Copa dos Campeões da Europa para o Bayern de Munique. Quando os torcedores da Juventus viram os torcedores do Liverpool recuando para invadir a área em que estavam, lembraram-se desses episódios, do que assistiram na televisão e leram nos jornais. Viram uma multidão de hooligans preparando-se para bater neles, como relata Nick Hornby, no livro “Febre de Bola”. E se desesperaram.
“Heysel estava para acontecer, com a mesma inevitabilidade do Natal. No final, a surpresa foi aquelas mortes serem causadas por algo tão inócuo quanto uma correria, prática em que metade dos torcedores juvenis do país vinha incorrendo, e que tencionava apenas assustar os adversários e divertir os corredores. Os torcedores da Juventus – muitos deles homens e mulheres chiques, de classe média – não sabiam disso, no entanto, e por que deveriam saber? Não possuíam o intricado conhecimento do comportamento das multidões inglesas que o restante de nós havia absorvido quase sem notar. Quando viram uma horda de hooligans ingleses correndo aos berros na sua direção, entraram em pânico e saíram correndo para a borda do seu recinto.”
Os italianos correram para longe da divisão com os ingleses, em direção a um muro de concreto. Alguns conseguiram escapar e outros foram amassados na parede. Cerca de 600 pessoas ficaram feridas e 39 morreram. “Heysel é absolutamente fundamental para entender Hillsborough”, afirma o jornalista britânico Tim Vickery. “A torcida estava cada vez mais sendo tratada como gado e isso cria um círculo vicioso. Sendo tratada cada vez mais como gado, ela vai se comportar cada vez mais como gado.”
Essa violência foi o gatilho para uma série de acontecimentos que, sinceramente, eram previsíveis. A estrutura do estádio de Heysel era antiquada, tanto que ele foi totalmente reformado dez anos depois (e rebatizado de estádio Rei Balduíno, para apagar a ligação com a tragédia de 1985). “Ninguém estava fazendo manutenção. Foi um estádio caindo aos pedaços. O Liverpool implorou para não jogar lá”, conta Vickery. Também houve problemas com a venda dos ingressos. Os fãs da Juventus ficaram atrás de um gol, e os ingleses atrás de outro. Mas, um setor adjacente ao do Liverpool era reservado a torcedores locais. Seria uma área supostamente neutra, mas a Bélgica é um país com muitos italianos. “O Liverpool também pediu para não venderem os ingressos dessa maneira. Sabiam que ia dar merda”, acrescenta.
Por fim, como parece ser uma constante, a atuação da polícia foi falha. Uma linha de homens fardados separando os dois grupos seria suficiente. “Foi um desastre total, tanto que o chefe da polícia no comando daquela noite foi para a cadeia. A polícia estava sem pilha no radinho para se comunicar”, exemplifica. “Sem as ações da torcida do Liverpool, nada teria acontecido, mas houve outros fatores nas mortes daquelas pessoas. Ninguém quer aceitar responsabilidade. Fica mais fácil focar no hooliganismo. Eram brigas teatrais, o teatro era ganhar espaço, ninguém queria matar o adversário.”
Enquanto Hillsborough é uma fonte de irritação e tristeza para os torcedores do Liverpool, o sentimento mais associado com Heysel é a vergonha. Eles não ignoram a culpa que tiveram na morte daquelas pessoas. “A maioria concordou com a suspensão, foi arbitrário, mas nós sentimos a culpa. Não fingimos que não era nossa culpa”, conta o músico Daniel Hunt, 39 anos, da banda Ladytron, fanático do Liverpool desde que se entende por gente e DJ da final da Liga dos Campeões de 2005, entre Liverpool e Milan. “Os torcedores foram responsáveis.”
Em Hillsborough, eles não tinham essa mesma culpa. O estádio de Sheffield, frequentemente utilizado para a Copa da Inglaterra, era um problema desde o começo da década. Em 1981, houve um problema parecido no encontro entre Wolverhampton e Tottenham. Uma aglomeração na entrada do setor Leppings Lane, no lado oeste do campo, obrigou a polícia a abrir o portão C. Houve empurra-empurra e quase 40 pessoas feridas, mas, naquela época, ainda não havia grades para dividir a arquibancada em jaulas. A multidão não ficou tão apertada e os portões laterais foram abertos para ajudar a aliviar o escoamento.
Depois dessa confusão, Hillsborough deixou de ser usado para a semifinal da FA Cup por alguns anos. A polícia de South Yorkshire justificou que os clubes classificados para essa fase da competição nas temporadas seguintes não ficavam próximos a Sheffield e que houve reclamação dos moradores. Essa desculpa só cola se você acreditar em coincidências, até porque, em 1984, o Everton enfrentou o Southampton (Liverpool está a 100km de Sheffield). Ao longo da década, houve várias reformas no estádio, inclusive a divisão da arquibancada térrea de Leppings Lane em cinco pequenas jaulas acessadas por poucos túneis. Com tantas alterações, o certificado de segurança do estádio não foi revisto.
A Federação Inglesa decidiu voltar a utilizar a casa do Wednesday para a semifinal da FA Cup de 1987 e, surpresa!, houve confusão. Torcedores do Leeds, novamente, ficaram aglomerados na entrada de Leppings Lane e o início do jogo contra o Coventry City precisou ser adiado em 15 minutos. No ano seguinte, Liverpool e Nottingham Forest também jogaram e houve relatos de superlotação e pessoas passando mal, amassadas contra a grade. Hillsborough era uma bomba, com um pavio surpreendentemente longo, mas que já estava prestes a ser completamente queimado.
Em 15 de abril de 1989, há exatos 25 anos, novamente torcedores do Liverpool amontoaram-se nos portões do lado oeste. Às 14h50, horário local, os setores 3 e 4 já estavam lotados e ainda havia muita gente no lado de fora. Para aliviar a multidão, a polícia mandou abrir o portão C, dois minutos depois, mas, segundo o relatório do lorde Peter Taylor, responsável pelo inquérito, não fechou os túneis que davam acesso àquelas jaulas. Bastava colocar um policial em cada, desviando a população para as áreas periféricas. Também não havia sinalização. “Não ficou claro que poderiam ir à esquerda e à direita. Então, a manada foi para o meio. De repente, houve uma entrada de milhares de pessoas na jaula central”, diz Tim Vickery.
A capacidade oficial das “pens” 3 e 4, combinada, era de 2.200 pessoas. Posteriormente, descobriram que, na verdade, cabiam apenas 1.600. Estima-se que mais de 3.000 estavam aglomeradas naqueles locais. Hillsborough já estava reformado, e o espaço sobressalente que evitou uma tragédia em 1981 não existia mais. “A operação da polícia foi feita para conter o hooliganismo”, diz Tim Vickery. “Esqueceu-se do primordial: se você coloca tanta gente em um espaço reduzido, é uma ameaça à saúde. O pensamento foi que essas pessoas representavam uma ameaça à segurança. Então vamos colocar eles para dentro o mais rápido possível e mandaram abrir o portão. O responsável pelo portão falou: ‘não pode fazer isso, vai morrer gente.’ Mas o portão abriu.”
O encarregado da operação era David Duckenfield, comandando um jogo de futebol pela primeira vez na vida. Ele também não orientou que o início da partida fosse atrasado, como aconteceu em 1987. As pessoas vestidas de vermelho ouviam os gritos dos torcedores que já estavam lá dentro e estavam ansiosas para ver um dos melhores times que o Liverpool já teve. Queriam entrar logo no estádio para não perder nada.
“O básico seria, e passou a ser, uma semana depois de Hillsborough, que, em situações assim, você retarda o início do jogo. Não foi assim. Começou às 15h e havia muito torcedor do Liverpool no lado de fora”, conta Vickery. “O policial não sabia muito bem o que estava fazendo, faltou experiência, sabedoria. Faltou muito caráter também.”
O desespero foi geral. As pessoas mais próximas do campo pediram que o portão fosse aberto, mas a polícia ainda não estava convencida de que se tratava de um acidente. Continuava a seguir os protocolos cuidadosamente construídos em anos de combate ao hooliganismo. Os torcedores que estavam no andar de cima perceberam o que estava acontecendo e começaram a tentar puxar os colegas, mas isso não era tão simples assim. “As grades eram desenhadas para manter as pessoas embaixo, não para desenconrajá-las”, conta Daniel Hunt. Ainda assim, alguns conseguiram passar aos setores 1 e 5, que estavam muito mais vazios. Às 15h05, o alambrado da jaula 3 cedeu. Às 15h06, o jogo foi paralisado.
Foi apenas neste momento que os jogadores começaram a ter uma noção maior do que estava acontecendo. “Fomos para o vestiário e fomos informados de que pessoas haviam morrido, tomamos banho, nos sentamos e encontramos nossas mulheres e namoradas em prantos”, conta Alan Hansen. “Mas uma coisa que eu me lembro é que eu voltei para casa naquela noite e pedi comida chinesa. Ainda não havia me tocado da enormidade do que havia acontecido. Foi apenas no dia seguinte, quando fui para Anfield e vi o mar de flores.”
A polícia permanecia cética e impediu que as ambulâncias e os médicos entrassem no gramado para atender os feridos por muito tempo. Os próprios torcedores carregaram os outros em macas improvisadas e cuidaram dos primeiros-socorros. Posteriormente, o superintendente da polícia de South Yorkshire, John Nesbit, alegou que isso foi uma tática deliberada para que “eles não descontassem a frustração na polícia”. Enquanto isso, os fardados formavam um cordão em volta do gramado para evitar uma invasão. A maioria da polícia ainda achava que a prioridade era essa. “Eles só se preocupavam com isso. Foram várias decisões erradas, tomadas no meio do pânico. Havia a percepção de hooliganismo”, acrescenta Hunt. Apenas 14 dos 96 mortos chegaram ao hospital.
A primeira vez que Daniel Hunt assistiu a uma partida de futebol no estádio foi em 1983, entre o Liverpool e uma seleção inglesa cheia de reservas – “não conhecia ninguém” -, um amistoso em homenagem a Phil Thompson. Poderia ter estado em Hillsborough, portanto, mas, aos 14 anos, brincava com os amigos na rua até mais ou menos o começo do jogo. Entrou em casa e começou a acompanhar as notícias. Primeiro, ouviu que havia dez feridos. Em seguida, ouviu que duas pessoas haviam morrido. A gravidade do que estava acontecendo começou a ficar mais clara, mesmo para um adolescente. “Toda hora, os números iam subindo. Essa é a imagem mais clara que eu tenho. Acho que isso acontece em todas as tragédias”, pondera.
A voz do músico, que também tem trabalhos como produtor de Christina Aguilera e Placebo, perde a força quando precisa falar do que aconteceu em Sheffield, mesmo 25 anos depois. Na época, nenhum de seus amigos ou parentes estava no estádio, mas a cidade não é tão grande assim. Com o tempo, foi conhecendo irmãos e amigos, mães e namoradas, que perderam seus entes queridos. Menciona quantas pessoas poderiam ter sido salvas se Hansen não tivesse ignorado aquele aviso. Não consegue deixar de pensar em quantos ainda estariam vivos não fossem o preconceito da polícia e a negligência das autoridades. “Um amigo meu disse que o irmão morreu em Hillsborough. Ele tentou puxá-lo e não conseguiu. Ele o perdeu, basicamente”, lembra. “Há 96 histórias como essa.”