quarta-feira, março 12, 2025

Três atos finais de três heróis humanos

A decisão mais difícil na carreira de um jogador de futebol é escolher o dia de pendurar as chuteiras. Não existe necessariamente um “momento ideal”, mas sim aquilo que traduz o desejo mais íntimo. O adeus serve como um divisor de águas, entre aquilo que se viveu intensamente por anos a fio e aquilo que se limitará a recordações a partir da despedida. Como alguns definem, há duas mortes na vida de um futebolista, muito embora a primeira delas já possa oferecer a dádiva da memória eterna entre incontáveis torcedores.

No último final de semana, três grandes nomes do futebol deram tal passo ao que se torna apenas lembrança, não mais vivência diária. São três histórias singulares e três despedidas bastante distintas entre si. Em comum, a identificação com o lado humano que os três conseguem suscitar.

A única despedida ocorrida num jogo oficial foi experimentada por Jesús Navas. Ainda não foi seu último compromisso, tendo em vista que está relacionado para a visita ao Real Madrid no próximo domingo, mas o que perdurará realmente foi seu último ato como jogador do Sevilla no Estádio Ramón Sánchez-Pizjuán. Foi a cena final de uma vida dedicada ao clube, dando seu passo derradeiro ao reconhecimento como maior jogador da história dos rojiblancos.

Navas não foi atleta de um clube só, considerando a passagem respeitável que teve pelo Manchester City entre 2013 e 2017. A camisa do Sevilla, ainda assim, é como sua segunda pele. Sua decisão de se aposentar também teve percalços, ignorado num primeiro momento pelos dirigentes, até que seu contrato fosse prorrogado por mais alguns meses rumo ao adeus neste final de ano. O corpo afligido pelas lesões pede um descanso. E, afinal, a grandeza do capitão já está gravada.

Navas superou a marca de 700 jogos pelo Sevilla, quase 300 a mais que o segundo da lista. Ninguém envergou mais a camisa do clube ou conquistou mais títulos. O prata da casa surgiu num momento de reconstrução, após passagens dos andaluzes pela segunda divisão. Explodiu para auxiliar os sevillistas em conquistas seguidas da Copa da Uefa. Representou o clube no título mundial com a seleção em 2010. O garoto era um orgulho que os rojiblancos queriam cuidar com carinho, especialmente após a repentina perda de Antonio Puerta, outro pupilo local. Era um deles em campo.

O talento de Navas abriu as portas da Premier League. Também fez com que a torcida do Sevilla o recebesse de braços abertos quando quis voltar, em 2017. Amarraria sua história vitoriosa no clube para faturar mais duas edições da Liga Europa. O ponta insinuante e veloz se transformou num lateral eficiente e confiável. Foi tão brilhante nesta reta final que conseguiu se recolocar na seleção espanhola para se tornar o elo com uma nova geração, medalhão no banco de reservas do time campeão da Euro 2024.

A aura de Jesús Navas no Sevilla é sobre raízes e dedicação. É humana. Ainda no início da carreira, o prodígio sofria crises de ansiedade severas quando precisava deixar a cidade de Sevilha, o que chegou a limitá-lo em certos momentos. Superados os entraves psicológicos, Navas permitiu que tanto o Sevilla quanto a seleção da Espanha expandissem suas fronteiras. Em casa, seguiu recebendo o apoio dos seus, o que se notou até o ato final.

Andrés Iniesta se despede do futebol

Companheiro em parte dessas jornadas, Andrés Iniesta também receberá aplausos todas as vezes em que quiser voltar para o seu lar. O manchego não nasceu em Barcelona, mas sua identidade junto ao Barça é tão forte quanto a de qualquer catalão. A imagem de Don Andrés já estava cristalizada há tempos como um dos maiores ídolos da história barcelonista e, para tanta gente, como o maior jogador do futebol espanhol.

Iniesta já tinha se afastado dos principais holofotes do futebol há alguns anos. Preferiu um final de carreira distante das pressões de Champions League e de Copa do Mundo. Seus lampejos a partir de 2018 se deram no Japão, onde também foi venerado. Já no último ano, sem ser tão aproveitado pelo Vissel Kobe, mas ainda com vontade de jogar, teve uma rápida estadia pelos Emirados Árabes Unidos.

Iniesta preferiu viver outras faces do futebol em que pudesse desfrutar o jogo e a família, ganhando também um bom dinheiro e conhecendo novas culturas, mas com menos cobranças sobre seu corpo e sua mente. Nada que apagasse o muito que já tinha feito – pelo contrário. Dá para dizer que os rumos do Vissel Kobe se alteraram com a primazia de contar com Don Andrés.

A obra de Iniesta, de qualquer maneira, tinha se feito eterna muito antes da decisão pelo adeus. É o herói aclamado em todos os estádios da Espanha, inclusive entre rivais, tamanha gratidão pelo gol que definiu o primeiro título mundial do país. É o craque que tratou a bola com uma categoria de raríssimos e brilhou em praticamente todas as grandes finais da carreira. É o profissional exemplar, que honrou o futebol com sua postura e seu companheirismo.

Iniesta nunca deixou de exibir seu lado humano, mesmo sendo mitificado tão jovem. O craque sempre foi franco sobre suas dores – de quem saiu tão cedo do seio da família para viver seu sonho no futebol, de quem perdeu um amigo de forma repentina com a morte de Dani Jarque, de quem lidou com a depressão mesmo enquanto atravessava o período de maiores feitos da carreira. Conseguiu se refazer e viver o futebol em seus próprios termos.

O ato final de Iniesta aconteceu cercado dos seus, ainda que distante da Espanha. Um amistoso entre lendas do Barcelona e do Real Madrid, realizado em Tóquio, serviu de tributo à aposentadoria anunciada meses atrás. Foi uma grande reunião de amigos, tantos deles testemunhas do auge de Don Andrés. Um abraço era o agradecimento ideal a quem tanto ofereceu ao futebol.

Adriano se despede no Maracanã com a camisa do Flamengo (reprodução)
Adriano se despede no Maracanã com a camisa do Flamengo (reprodução)

E também foi com uma grande reunião de amigos, inclusive nas arquibancadas do Maracanã, que Adriano colocou um ponto final à sua trajetória nos gramados. A carreira do Imperador se encerrou, de fato, há bons anos. Seus últimos grandes momentos ocorreram há mais de uma década. Ainda assim, existia uma resistência em se admitir o que já se sabia, para não deixar de se sonhar com aquele potencial que talvez nunca tenha se cumprido por completo, mas que se fez suficiente para arrebatar tanta gente.

No fim das contas, bons momentos não faltaram a Adriano. Foi o Imperador numa Internazionale que recuperava seu domínio na Itália e de um Flamengo que reconquistou o Brasileirão depois de tanto tempo. Deixou tentos inesquecíveis para ainda outras torcidas, como ocorreu no São Paulo e no Corinthians. Cravou alguns dos gols mais significativos da Seleção no clássico contra a Argentina, o que basta por si.

O “e se…” acompanhará para sempre o olhar sobre a história de Adriano. O artilheiro é apenas dois anos mais velho que Iniesta, três que Navas. O que não se pode negar é que o Imperador fez bastante para que reconheçam o que realmente ele foi em seu intermitente auge: um centroavante avassalador, um multicampeão, um ídolo de diferentes torcidas. Também, sempre, muito humano.

Adriano valorizou o futebol de outra forma em sua caminhada. A perda do pai custou muito do seu gosto de permanecer em campo, a vontade de estar na sua comunidade guiou passos além das quatro linhas. Fez a sua escolha muito antes de se decidir pelo ato final, para preservar sua saúde mental e para viver aquilo que avaliava ser mais importante – sem ligar para críticas, absorvendo a empatia de quem o entendia.

A festa no Maracanã marcou a transição entre o que foi efêmero e o que já tinha virado eterno. Foi a sublimação de Adriano, em definitivo, como a pessoa que é – com seu carisma e suas quedas, com seu talento e a coragem rara de não se importar. Foi o Didico que riu, se emocionou e não deixou de alimentar a fantasia daqueles que sempre esperaram mais. Não seria possível ser mais quando Adriano sempre foi tão ele.

O jogo de despedida serve muitas vezes como um rito de passagem. Aqueles por tantos anos vistos como super-heróis voltam a ser apenas humanos. Adriano, Iniesta e Navas fizeram tal transição, ainda que em estágios diferentes, mas da mesma forma leve. Foram super-heróis sem nunca deixarem de ser humanos – entre a dor das perdas, em comum aos três, e o gosto da glória que eles experimentaram. Tornaram o futebol palpável naquilo que o faz diferente: a capacidade de nos identificarmos. De desfrutarmos grandes alegrias, mesmo que a vida tenha seus altos e baixos.

Leandro Stein
Leandro Stein
É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Foi redator, editor e sócio da Trivela de 2010 a 2023.

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