O último Derby de Merseyside no histórico estádio prometia ser uma despedida amarga para o Everton. De um lado, um time lutando para escapar do rebaixamento; do outro, o Liverpool, líder confortável da Premier League. Mas o futebol, em sua imprevisibilidade gloriosa, escreveu um final digno de cinema.
O jogo seguiu o roteiro esperado: o Everton abriu o placar com uma jogada ensaiada, mas viu o Liverpool virar para 2 a 1. Aos 97 minutos, parecia o fim. Foi então que o imponderável aconteceu: uma bola alçada na área, um desvio de cabeça de Tim Iroegbunam, e a queda perfeita para James Tarkowski.
Não foi um craque técnico, nem um artilheiro famoso. Foi um zagueiro-zagueiro (alô, Vanderlei Luxemburgo!), daqueles que vivem para cortar bolas, não para fazer gols, quem estufou a rede com um chute de peito de pé, impecável. Alisson, estático, só observou. Tarkowski correu como um homem possuído, e Goodison Park, em seu derradeiro suspiro, rugiu ferozmente. O empate (2-2) não salvou o Everton do sufoco, mas garantiu que o estádio não se calasse sem um último êxtase em um clássico.
Foi o 38º empate entre os rivais em Goodison Park – um número que sintetiza a rivalidade: 41 vitórias do Everton, 41 do Liverpool. Até o destino pareceu sorrir para a simetria perfeita.
O recorde histórico de 1948
Se o empate de 2025 marcou o adeus, o jogo de 18 de setembro de 1948 simbolizou o auge de uma era. Naquele dia, 78.299 torcedores se espremeram em Goodison Park – um recorde jamais superado – para ver Everton e Liverpool empatarem por 1 a 1 na Primeira Divisão.
Em um país ainda se reconstruindo após a Segunda Guerra, o futebol era mais que esporte: era alívio, identidade, esperança. Willie Fagan abriu o placar para os Reds; Ephrain Dodds, de pênalti, igualou para os Toffees. Não houve vencedores, mas a multidão em pé, amontoada nas arquibancadas de madeira, testemunhou o poder do futebol como força unificadora.
A construção de um sonho
Goodison Park nasceu de um sonho. Em 1892, o Everton, cansado de pagar aluguéis abusivos em Anfield (sim, a casa atual do Liverpool já foi dos Toffees), comprou um terreno em Mare Green Field e construiu seu próprio estádio.
Inaugurado em 24 de agosto de 1892, com água quente, banheiros modernos e tribuna de imprensa, Goodison Park era “o estádio mais completo do Reino Unido”, segundo os jornais da época. O amistoso inaugural contra o Bolton atraiu 12 mil pessoas – um marco para um clube que, pela primeira vez, tinha um lar verdadeiramente seu.
Palco de glórias mundiais
Goodison Park transcendeu o Derby de Merseyside. Em 1894, recebeu a primeira final da FA Cup fora de Londres (Bolton 4×1 Notts County).
Em 1966, foi um dos estádios da Copa do Mundo, com Pelé, Garrincha e Eusébio brilhando em seu gramado. Na histórica vitória de Portugal sobre a Coreia do Norte (5×3), Eusébio marcou quatro golos – um espetáculo imortal.
Até Franz Beckenbauer deixou sua marca ali, na semifinal da Copa de 1966, quando a Alemanha Ocidental derrotou a URSS (2×1).
O legado pós-Everton
Em 2025, o Everton se despede de Goodison Park, mas o estádio não será esquecido. O terreno, aprovado para moradias e escritórios em 2021, seguirá o caminho de ícones como Highbury: transformado, porém vivo na memória.
Sua demolição não apagará o eco dos 78 mil gritos de 1948, nem o rugido ensurdecedor após o gol de Tarkowski em 2025. Como um fantasma feliz, Goodison Park permanecerá nas ruas de Liverpool – lembrança de um tempo em que estádios não eram arenas, mas templos de paixão coletiva.
Em 1894, Goodison Park assistiu ao primeiro Derby de Merseyside; em 2025, ao último. Entre esses dois momentos, escreveu-se a história de um lugar que foi teto para sonhos, guerras e reconciliações. Tarkowski, o herói improvável, talvez nunca saiba que seu gol foi um verso final nessa epopeia secular.